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A mostrar mensagens de março, 2022

"Quando a vida não te pertence – Não, não acredito na hipótese suicídio” (Texto 14 de 35)

Duarte despede-se e sai em direção a casa, sente-se triste e exausto e caminha vagarosamente, enquanto a sua mente viaja a grande velocidade pelos muitos momentos de convívio que ele e Rodrigo tiveram. Recorda-se de num fim de tarde quente de verão, após mais um treino, falarem do tema suicídio, a propósito de uma amiga de infância sua que “se tinha libertado desta existência terrena” e estas tinham sido as palavras de Duarte. Rodrigo foi assertivo, direto e coerente, como sempre era e confessou-lhe já ter pensado em tal, quando era jovem, num hiato de tempo que mediou entre a morte do pai e a doença da mãe, algo possivelmente potenciado por estar em plena adolescência. Disse entender a razão pela qual algumas pessoas o faziam, mas disse também que amava a vida e todas as pequenas coisas e que o dia seguinte, esse, era sempre um novo dia, renovado e com todas as muitas possibilidades e potencialidades que tal acalentava. - Duarte, moço, a vida é tão difícil e ao mesmo tempo tão ext...

“Quando a vida não te pertence – Rosa, Pedro Lobo e Duarte Nascimento” (Texto 13 de 35)

Lá fora, o frio fez-se imediatamente sentir mal os últimos raios de sol deixaram o contato com o solo, num fim de tarde que se mostra agora cortante e desolador. Lá dentro, as conversas de circunstância parecem já não fazer sequer sentido. - É bom saber que o meu cunhado tinha amigos. Rosa esboça um sorriso cansado, olha para Duarte e pergunta se iria estar presente na cerimónia a ter lugar na manhã do dia seguinte. - O dia já vai longo e estamos a pensar fechar, ir jantar e dar este dia por encerrado. - Sim, claro, pensei que ficassem um pouco mais e estava apenas a tentar não os deixar sozinhos. - Sabe? Um dos problemas com estes momentos é que todos aqueles que nunca nos deram atenção, que nunca gostaram verdadeiramente de nós, vêm prestar a sua última visita. Como se viessem certificar-se que morremos efetivamente. Duarte abriu muito os olhos e ela apercebeu-se de o estar a constranger. - Não estou a falar do Duarte, desculpe, não era essa a intenção. Estou a falar ...

“Quando a vida não te pertence – Jaime dos Santos Silva e Duarte Nascimento” (Texto 12 de 35)

O tempo parecia teimar em não passar num daqueles dias dolorosamente intermináveis. Uma divisão com poucas pessoas sem muito mais em comum que não fosse algum tipo de relação mais ou menos estreita com o falecido. - Achas que ele se suicidou como andam para aí a dizer? - Não sei Jaime, gosto de acreditar que não. É verdade que o tempo estava seco, o Rodrigo parecia em forma e era cuidadoso e não alguém de precipitado no que fazia e o telhado junto ao algeroz é extremamente seguro. Encolhe os ombros. - Até a treinar ele era prudente, aliás, nunca o vi perder o controlo de nenhuma situação e até aquilo que me falaste há pouco, da disputa com a irmã, me parece um pouco fora do Rodrigo que eu conheço, sempre controlado, sempre com um sorriso, concentrado no que fazia. Duarte franze a testa e olha para o desgastado chão de madeira, iluminado agora pela luz que alguém acendera. - Por outro lado, vejo agora que era um solitário, sem grandes perspetivas de futuro e com uma família ...

“Quando a vida não te pertence – Marta Lobo” (Texto 11 de 35)

Dois dias antes do infortúnio e do que quer que tenha provocado a queda do telhado, Marta Lobo, a irmã afastada e problemática, com vícios que apenas consegue deixar por pequenos períodos, voltara uma vez mais para pedir dinheiro no intuito de refazer a sua vida e desta vez, como já noutras anteriores, sem casa, sem trabalho e sem qualquer outra alma a quem recorrer. - Obrigado por nada, nunca posso contar contigo, era só mais esta vez. Estou sóbria. Consegues ver que estou. Gritou em tons de fúria. A Rodrigo, esta realidade surgia-lhe como que em uníssono, com todos os muitos outros momentos anteriores em que tinha dado o que tinha e o que não tinha para oferecer uma segunda, uma terceira e uma quarta nova vida à irmã. Não sabia se eram as constantes ameaças de pôr fim à sua própria vida, se o dizer que se ia prostituir ou que a próxima seria uma overdose, mas Rodrigo já não conseguia ter lugar na sua vida para ela, não por não querer, mas por já não conseguir. - Queres mata...

“Quando a vida não te pertence – Jaime dos Santos Silva” (Texto 10 de 35)

Durante os meses de Verão, o vizinho de baixo de Rodrigo, do alto dos seus quase um metro e noventa, mudava de namorada pelo menos duas vezes por semana e fazia jus à sua compleição física. Pelo menos, era o que Rodrigo acabava por acreditar ao não conseguir dormir com os gritos provenientes do ritual de acasalamento abaixo. Jaime, o vizinho de baixo, era gerente e proprietário de uma das muitas escolas de surf local, o típico louro do sol e do sal do mar, com um bronzeado que mantinha os doze meses do ano e um amante de tudo o que era radical, sem hesitar mostrar o seu negócio promitente com as frequentes mudanças de carro ou de mota. - Ainda não consigo acreditar. Os bons são os primeiros a ir, nada de mais injusto. Não muito tempo após a sua mudança para o prédio, a irmã de Jaime falecera e este recorda o sucedido.  Lembra-se, então, do momento em que a amizade entre ambos surgira. Jaime preparava-se para encher a carrinha com pranchas que tinha na garagem e ao vê-lo de ar tacit...

“Quando a vida não te pertence – Duarte Nascimento, Parte II” (Texto 9 de 35)

  Rodrigo e Duarte a dado momento passaram a treinar numa base quase diária, a menos que o segundo estivesse de serviço e daí passaram para um copo ocasional, geralmente aos sábados à noite, com uma ou outra vez com próprio Jaime a se lhes juntar. As conversas acabavam por se manter, inconscientemente para os outros, numa base quase superficial, desporto, as notícias do dia, o dia que tinha sido um pouco mais cansativo, mas que não queria falar disso, a família que tinha feito das delas, mas queria encerrar o assunto e mudar o registo, e este era Rodrigo, o politicamente correto que ouvia o que os outros tinham para dizer mas sem achar necessário falar de si, o mestre manipulador de conversas, o homem que conseguia falar apenas e tão-só do que lhe apetecia no momento. Recentemente, num dos muitos dias de treino combinado, Duarte acabou por subir e aguardar por Rodrigo, que se tinha atrasado numa reunião. Não teve propriamente tempo para se sentar, até porque foram conversando s...

“Quando a vida não te pertence – Duarte Nascimento, Parte I” (Texto 8 de 35)

  Um pouco antes do irmão ter-se mudado para o Algarve, o que acabou por acontecer logo após o fim do primeiro casamento deste, Rodrigo tratou de encontrar um apartamento, deixou de morar no hotel e mudou-se para um T2 num imóvel em Lagos, de três andares, sem elevador e com um apartamento por piso. No rés-do-chão, morava Jaime dos Santos Silva, um daqueles homens meninos que parecem nunca crescer e que quando chegam à meia-idade continuam a publicar fotografias nas redes sociais a exibirem-se de prancha na mão e a caminho de apanhar uma onda. No último andar, um casal alemão, pouco comunicativo ou sequer sorridente e que nele residia normalmente de maio a outubro, muito provavelmente a aproveitar os seus últimos anos de reforma. Rodrigo adquiriu o primeiro andar, reformou o apartamento a gosto e manteve um dos quartos para escritório, dizendo frequentemente, com ironia na voz, que a vista para a igreja o inspirava. Num prédio ao lado, também num primeiro andar, mora o vizi...

“Quando a vida não te pertence – Ana Torres”, (Texto 7 de 35)

  Ta lvez um pouco antes das duas, numa tarde sem vento, a temperatura acrescentou alguns graus, mantendo-se o dia frio, mas reduzindo o desconforto. - Os meus sentimentos… Não sabemos o que dizer, o Rodrigo trabalhou para nós nestes últimos dois anos, era o nosso pilar e ainda não sabemos o que vamos fazer sem ele. Uma pessoa genuinamente boa. O pai de Ana Torres, aparentemente por pena do jovem, mas ainda assim conhecendo as suas valências profissionais e pessoais, contratara Rodrigo após o grande escândalo, contra todas as recomendações da mulher e poucos meses depois, acabou por se reformar e passar a empresa para as mãos da filha. - Consigo imaginá-lo à porta do paraíso a apresentar um report com todas as oportunidades de melhoria, um plano de negócio e um controlo orçamental plurianual. Alguém sorri e ela continua: - Só posso garantir que no paraíso as despesas vão baixar, as vendas vão subir, e não tarda nada vai estar também a exigir um aumento salarial para os a...

“Quando a vida não te pertence – Memórias de juventude, Parte II”, (Texto 6 de 35)

  Atento, responsável, perfecionista, de raciocínio rápido, disciplinado e dedicado, assim era Rodrigo Lobo. Maduro para a idade, o menino homem que viria a ser o melhor aluno do seu curso, não ficou a saber nos tempos de faculdade o que era ficar inebriado por algo mais do que conhecimento.   Já a sua tese de mestrado, versou sobre o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, não tendo, no entanto, apesar de concluída, chegado a ver a luz do dia. Numa tarde de junho, preparava-se para sair da faculdade quando foi abordado por um sujeito com alguma idade, de ar distinto e que parecia o estar a aguardar e que lhe fez sinal. Pouco abaixo estava um Mercedes Benz Classe S, preto, com um motorista no interior no banco do condutor e um outro homem, cá fora, junto ao carro, de fato escuro e uma postura rígida que denunciavam uma eventual função de segurança. - Boa tarde, Rodrigo. E se eu lhe disser que posso fazer de si um homem muito rico? E este foi um mom...

“Quando a vida não te pertence – Memórias de juventude, Parte I” (Texto 5 de 35)

  A adolescência é, ou deveria ser, um momento de experiências, com os sentimentos todos muito potenciados ao limite e sentidos à flor da pele, num período de crescimento a solidificar um amanhã que se quer pleno de boas lembranças. Rodrigo recordava-se da primeira noite após a primeira sessão de quimioterapia do pai. Este deitado na cama, a tremer, mas ainda assim a fazer por conter o que lhe pareceu ser dor e desconforto, mas a acentuar um “está tudo bem”. Nunca se habituou ou normalizou o suficiente e nunca deixou de sofrer com aquela voz que lhe repetia constantemente e insistentemente que cada dia passado com o pai poderia ser o último e apesar de ter nascido no seio de uma família católica, crente, ou talvez por esse mesmo motivo, um dia houve em que acabou por com Deus se zangar. Justamente com aquele Deus que todos tanto veneravam e tanto acreditavam, tão justo e tão misericordioso, mas que não o estava a deixar crescer com pai presente. Que mal é que poderia ter feit...

“Quando a vida não te pertence – Rodrigo Lobo, memórias de infância”, (Texto 4 de 35)

  Há memórias que parecem acompanhar-nos pela vida ao estarem como que estampadas no nosso consciente, outras nem por isso, e nem sempre conseguimos entender bem a razão dessas primeiras ficarem assim tão presentes e nítidas. Sente a vertigem do momento, numa queda sem salvação e presta-se a deixar-se ir e a levar com ele todos os momentos que o moldaram na pessoa que foi e dos quais brotaram os seus defeitos e virtudes, até que solta o seu último sopro no exato momento do brutal embate com o solo. Uma das lembranças mais antigas que Rodrigo mantinha bem próxima, recuava aos seus seis ou sete anos, de um dia em que pela primeira vez ficara a jogar à bola na rua, sem dar pelo cair da noite. Ao chegar a casa, o ralhete acabou por ser tremendo, com a mãe a responsabilizá-lo por ter levado o pai doente a sair de casa à sua procura. Os pais nunca para com ele tiveram um comportamento violento a um nível físico, mas mesmo acreditando que não o faziam de forma consciente, pareciam...

“Quando a vida não te pertence – Pedro Lobo” (Texto 3 de 35)

  - O meu irmão morreu? Como é que aconteceu? Não, não acredito. Desliga o telemóvel, deixa-se cair de forma pesarosa no sofá, leva as mãos à cara e perde-se em lágrimas, parecendo sentir-se devorar por pensamentos de dor e culpa. Pedro Lobo tinha mais dez anos de diferença de Rodrigo e deixara Gaia rumo a Lagos, onde numa fase inicial chegou a morar em casa do irmão, poucos meses depois de ter começado a namorar Rosa. A adaptação foi particularmente difícil e inicialmente sentiu-se até, como que, a mudar para um outro país, com uma outra língua e outra forma de estar e de ser. E, retirando as temperaturas um pouco mais amenas de um inverno quase inexistente, por comparação, naquela fase inicial, o algarve acabou por lhe dizer muito pouco.   Hoje, vinte anos passados e nem o sotaque o parece querer denunciar. A idade adulta aproximou os irmãos e nos primeiros anos, Rodrigo, Pedro e Rosa, qual tribo, encontravam-se com uma frequência diária, com almoços e jantares aos...

“Quando a vida não te pertence – Rosa Maria Lobo” (Texto 2 de 35)

  - O Rodrigo? Rosa mantém-se sentada e parece pensar enquanto se perde a olhar para o infinito. Levanta a mão direita no sentido de ajeitar suavemente o cabelo longo e liso, que muito se orgulha de estar a caminhar para o branco, a contrastar com uma pele que mantém tão jovem quanto a evolução o permite. Respira profundamente, enquanto avalia a sua plateia, solta um longo e doloroso suspiro e parece suster a respiração por uma fração de segundo, para depois continuar. - É como um irmão. Era. Inspira com sentimento, levanta a cabeça, olha pela grande janela de madeira, pintada de branco e entreaberta para um céu de nuvens, também elas brancas com um sombreado a cinza, a avançar muito lentamente rumo ao sul e a provocar, aqui e ali, pequenos, mas gloriosos focos de raios de sol como que a comunicar algo de miraculoso. Lá fora, a vida prossegue o seu curso com os transeuntes a parecer ignorar o milagre da vida e até a demonstrar algum desagrado perante estes primeiros dias ...