“Quando a vida não te pertence – Jaime dos Santos Silva” (Texto 10 de 35)

Durante os meses de Verão, o vizinho de baixo de Rodrigo, do alto dos seus quase um metro e noventa, mudava de namorada pelo menos duas vezes por semana e fazia jus à sua compleição física. Pelo menos, era o que Rodrigo acabava por acreditar ao não conseguir dormir com os gritos provenientes do ritual de acasalamento abaixo.
Jaime, o vizinho de baixo, era gerente e proprietário de uma das muitas escolas de surf local, o típico louro do sol e do sal do mar, com um bronzeado que mantinha os doze meses do ano e um amante de tudo o que era radical, sem hesitar mostrar o seu negócio promitente com as frequentes mudanças de carro ou de mota.
- Ainda não consigo acreditar. Os bons são os primeiros a ir, nada de mais injusto.
Não muito tempo após a sua mudança para o prédio, a irmã de Jaime falecera e este recorda o sucedido. 

Lembra-se, então, do momento em que a amizade entre ambos surgira. Jaime preparava-se para encher a carrinha com pranchas que tinha na garagem e ao vê-lo de ar taciturno e algo perturbado, Rodrigo não hesitou em ajudá-lo e acabar por o acompanhar e ter, em plena areia da praia, a sua primeira lição gratuita de surf.
- Mais do que um vizinho, um amigo sempre presente, um amigo que não deixava uma mensagem por responder ou uma chamada por devolver.
Da longa conversa que teve com Jaime, Duarte ficou a pensar que também este, por mais contato que tenha tido com Rodrigo, nunca o chegou a conhecer.
- Duarte, mano, sinto-me culpado, não imaginas as vezes que insisti para que ele fosse limpar a merda do algeroz. Mas ofereci-me para ir com ele. Por que razão é que não me chamou?
- Não penses mais nisso, a culpa não é tua rapaz, ele pareceu-me um pouco consternado nos últimos dias e por vezes não se estar a pensar no que se está a fazer é meio caminho para a desgraça…
- Também tinha uma família de merda, o desgraçado. No dia anterior teve uma discussão com a irmã que se ouviu no prédio inteiro.
Interrompe Jaime.
Duarte recorda o facto da sua própria vizinha de baixo já lhe ter feito o apontamento de se ter cruzado com uma mulher que "saía apressadamente do prédio ao lado a murmurar obscenidades e com aspeto de quem tinha saído de uma sala de chuto".
- Reparei que tens estado a falar com todos, desconfias de alguma coisa?
Duarte levanta as mãos em sinal de negação.
- Quando fico desconfortável, falo. Nunca me sinto confortável nestas situações.
Jaime acena com a cabeça em sinal de compreensão e de também ele se sentir deslocado. Levanta-se e move-se para junto da janela, que continua aberta, pega no telemóvel e troca mensagens pensativo, enquanto olha em direção ao infinito.
Regressa para junto de Duarte, encolhe os ombros e volta a sentar-se.

Comentários

  1. Caramba, quem é mesmo Rodrigo? Ninguém parece saber. O que guardaria ele tão ciosamente...

    Boa tarde, João

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    1. Rodrigo nos seus altos e baixos. Alguém que até determinada altura fez um caminho brilhante, pelo menos a nível académico, já que a nível profissional, mesmo com todas as suas qualidades, o mérito, esse, não terá sido seu… (sorrisos)

      Rodrigo que manipula conversas e pouco ou nada diz de si, por outro lado não deixa uma SMS ou telefonema por devolver a um amigo…
      Um beijinho para ti

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  2. E o mistério adensa-se. Levantou-se uma ponta do véu, e ficamos a saber que a morte do Rodrigo aconteceu, quando limpava o algeroz do prédio. Costuma-se dizer que um descuido é a morte do artista. Mas será que foi mesmo uma distração?
    O Jaime parece preocupado com o facto do Duarte poder estar desconfiado de alguém, ou de alguma coisa. E porque é que ele insistia com o Rodrigo para limpar o Algeroz? Que obrigação tinha o vizinho do primeiro andar para o fazer? Existem empresas especializadas para o fazer. E as mensagens logo a seguir, seriam inocentes? Quem se lembra de ir mandar mensagens num velório?
    E bom parece que a irmã do Rodrigo deu um ar da sua graça. Vamos ver quando aparece a sério.
    Continuo a gostar muito da história.
    Abraço e saúde

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    1. Gostava tanto de comentar um pouco mais (sorrisos)
      Gosto muito das suas interrogações (mais sorrisos) e posso dizer que se estivesse a escrever hoje o conto, após o seu comentário, o enredo teria mais um “ramo”….
      Abraço, muito obrigado e uma semana inspirada

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  3. Não te zangues, João, fazer comparações é sempre desagradável.
    A morte de Rodrigo lembra-me o romance de Peter Høeg (1957, Copenhaga)
    “Smilla E Os Mistérios da Neve”.
    Claro que não houve descuido, mas sim um empurrão.
    Gosto de policiais “neo-noir”.
    Abraço forte da amiga de longe 🕊

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    1. Eu nunca me zango contigo.
      Penso que hoje em dia já tudo foi inventado… mas o “empurrão” fez-me sorrir (e muito)
      E tenho uma história engraçada para contar.
      Na última vez que estive na blogosfera, num dos contos, cheguei a pensar ter uma ideia fantástica para um conto e fiz o “desenho”, continuei a escrever e estava pronto para rever e procurar pelos “lapsos” quando cometi um grande erro e fui cortar o cabelo…
      Daí passei pela livraria e descobrir dos livros, mais ou menos recentes e que me pareciam abordar o tema que eu tanto orgulho tinha tido a pensar que estaria a trazer algo de novo e diferente…
      Em resumo, saí da livraria com mais dois livros e a história teve de ser alterada e reformulada dado não querer apresentar algo idêntico e que me faria parecer estar a copiar autores consagrados com cópias baratas (muitos sorrisos)
      Um beijo para ti

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  4. Não faço a mais pequena ideia do caminho que a história vai tomar.
    E isso é óptimo.

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  5. Comentários são prematuros enquanto o desenrolar da ação não nos fornecer mais pistas esclarecedoras.
    Abraço amigo.
    Juvenal Nunes

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  6. Estou ainda na leitura dessa misteriosa e interessante história. Evitarei comentar porque eu pensava em algo , mas os capítulos lidos, desfez o que eu estava imaginando ( (risos) .
    Muito bom, João.
    Abraços

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    1. O primeiro conto um pouco mais longo que escrevi na blogosfera, foi escrito texto a texto, ou seja, depois de estar publicado estava “preso” ao que tinha escrito antes. Tal originou inúmeras incongruências por um lado (sorrisos) mas por outro divertiu-me bastante porque os comentários dos amigos na visita ao blogue acabavam por servir de inspiração para o desenvolvimento do enredo.
      Abraço, obrigado e boa semana

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  7. Rodrigo é demasiado misterioso.
    Vamos acompanhar a ver onde isto chega!
    Boa semana.
    :)

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  8. Este Rodrigo é de facto um mistério. Veremos no desenrolar da história o que mais este personagem nos reserva.
    Grato pela visita e gentil comentário no meu cantinho.

    Abraço, e ótima semana.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com

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  9. Jaime, mais uma personagem, que não sei se será secundária ou principal, mas tem o seu interesse.
    Continuo sem saber como morreu Rodrigo, mas só a continuação dos textos nos poderá aliviar esta natural curiosidade.
    Gosto da sua escrita pormenorizada e descritiva.

    Um beijo primaveril.

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    1. Tenho quase a certeza de que se acabaram as novas personagens (sorrisos) prometo (acho – mais sorrisos).
      Com tanta folha para se saber como é que morreu Rodrigo e mesmo agora ainda se sabe tão pouco… (sorrisos)
      A escrita ainda tem muito por onde melhorar, mas não teria aqui chegado sem a ajudar de quem me motiva e me desafia e pessoas como a Céu têm tido um papel muito importante, o meu agradecimento.
      Um beijo primaveril e um fim de semana com sol…

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  10. Olá, João

    Neste capítulo penso que começa a dar-nos uma ideia de como Rodrigo
    morreu. Foi limpar o algeroz, caiu e...pronto. Será? A história seguirá
    o seu curso e o autor vai manter o suspense até achar conveniente :)
    Apesar de ser esquivo em contar da sua vida, Rodrigo apoiou Jaime
    quando foi da morte da irmã. Um ponto a seu favor, realmente.

    Isto está muito interessante, com os comentadores, cada um, a dizer
    da sua justiça. Veremos como consegue gerir estas opiniões. Mas
    como o conto já está escrito, não influenciará o seu desfecho.

    Abraço
    Olinda


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    1. (muitos sorrisos)

      Rodrigo estava no telhado supostamente com a finalidade de limpar o algeroz (posso confirmar, eu vi – sorrisos) e efetivamente caiu… mas não posso garantir muito mais do que isso…
      Rodrigo tinha qualidades, será que vamos conhecer o ser humano que foi?
      Sim, os 35 textos estão escritos, mas os últimos dois necessitam de revisões que podem “variar” aqui e ali, estou a aguardar ter o distanciamento suficiente para ter uma ideia mais clara do final.
      Mas, o seu comentário deixou-me com saudade do meu primeiro conto de blogue em relação ao qual os comentários tiveram de facto influência e fiquei tentado a experimental algo do género no futuro… talvez com apenas uma postagem por semana para dar tempo de ter comentários e de os “trabalhar”
      Muito obrigado, abraço e bom fim de semana

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  11. Acompanhando a estória que me parece muito interessante.
    Cumprimentos

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  12. Pois, o comportamento mulherengo, esconde muita coisa...

    Bom resto de semana

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    1. Poucos foram os contos em que não tive um ou outro personagem que transformados em pessoas talvez não fossem bem do meu agrado (sorrisos) e Jaime representa algumas das caraterísticas que gosto menos nas pessoas (mais sorrisos - inveja possivelmente)
      Obrigado, abraço e bom fim de semana

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  13. A bagagem passada do Rodrigo devia conter muitas magoas, desilusões e sonhos desfeitos, um lado negro que o oprimia e do qual ele não se conseguia soltar, mesmo tendo amigos, como o Jaime e o Duarte a tentar ajudar. Neste ponto da história fiquei com a ideia que o local fatídico teria sido o telhado, mas fica a duvida se ele se suicidou ou se foi empurrado e se foi assassinado porque razão?
    Muito interessante.
    Abraços

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  14. Os bons são os primeiros a ir, nada de mais injusto.

    Aprendi com o tempo que os não tão bons precisam de metanoia antes de partir e ficam até aprenderem um pouco mais do bem e da paz.

    Tenha dias abençoados!
    Abraços fraternos

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    1. *os primeiros a irem...
      ** Antes de partirem...

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    2. Disse algo de muito bonito, poético até e temos tanto para aprender.
      Muito obrigado, boa semana e um abraço fraterno

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