“Quando a vida não te pertence – Jaime dos Santos Silva e Duarte Nascimento” (Texto 12 de 35)

O tempo parecia teimar em não passar num daqueles dias dolorosamente intermináveis. Uma divisão com poucas pessoas sem muito mais em comum que não fosse algum tipo de relação mais ou menos estreita com o falecido.

- Achas que ele se suicidou como andam para aí a dizer?

- Não sei Jaime, gosto de acreditar que não. É verdade que o tempo estava seco, o Rodrigo parecia em forma e era cuidadoso e não alguém de precipitado no que fazia e o telhado junto ao algeroz é extremamente seguro.

Encolhe os ombros.

- Até a treinar ele era prudente, aliás, nunca o vi perder o controlo de nenhuma situação e até aquilo que me falaste há pouco, da disputa com a irmã, me parece um pouco fora do Rodrigo que eu conheço, sempre controlado, sempre com um sorriso, concentrado no que fazia.

Duarte franze a testa e olha para o desgastado chão de madeira, iluminado agora pela luz que alguém acendera.

- Por outro lado, vejo agora que era um solitário, sem grandes perspetivas de futuro e com uma família que deixa a desejar. Não sei, Jaime.

- Solitário, mas não tanto, uma boa parte das noites eram dormidas fora de casa. Normalmente sou o último a entrar e o primeiro a sair e somos três no prédio, é fácil dar pela ausência.

- Era solteiro, podia fazer o que quisesse. Não é da nossa conta, mas fico feliz por o saber um pouco menos só. Como é que vai o teu negócio? Não deve ser fácil nos meses de inverno…

Duarte aproveita para mudar de assunto, a vida do amigo não lhe dizia respeito e também não queria acreditar na teoria do suicídio, o Rodrigo que ele conhecia não o teria feito.

Pensa que teria de encontrar uma maneira de ter acesso ao relatório do médico. Fazia-lhe bem mais sentido que se tivesse sentido mal, os seus prédios eram idênticos e o telhado era bastante acessível, ao contrário da maioria e não causava dificuldades de maior a ida para limpeza do algeroz ou verificação do estado das telhas.

Foi acenando sem prestar atenção ao que Jaime lhe estava a dizer.

“Estaria metido com uma mulher casada e terá tido problemas com o marido? Um crime passional? Seria com um homem?” 

Abanou a cabeça em sinal de negação. Rodrigo sempre lhe parecera resolvido com a vida para ter problemas em assumir e viver uma vida dupla sem sentido.

- Não concordas com que parte? Pensava que era o correto.

Questiona Jorge, que mostra surpresa.

- Desculpa, venho de um turno de 24 horas e estou tão cansado que queria acenar que concordava e pelos vistos, fiz exatamente o gesto contrário.

Mentiu. Mordeu o lábio e acrescentou em sussurro.

- A irmã, pelo menos, parece tranquila.

- Tem razões para isso, tem direito a metade da casa. Deve dar para umas boas doses. Quando fui tirar um café esteve a fazer-se a mim, como se estivéssemos num bar e não no funeral do próprio irmão. Convidou-me para um copo, acreditas?

- Tu atrás das miúdas de vinte anos e uma quase sexagenária a fazer-se ao piso, que desplante…

Duarte conclui com um sorriso malicioso, que Jaime ignora.

- Teve o descaramento de me dizer “o meu pobre irmão andava tão deprimido e infeliz, consigo entender que se tenha libertado. A vida é tão difícil.”

- Deste-lhe resposta?

- Virei-lhe as costas.

Comentários

  1. Começa logo brm, e é muito bem conduzido
    Gostei João

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  2. Vão surgindo novos componentes interessantes na história. Essa irmã que mal consegue disfarçar o alívio pela morte do irmão. O direito pela metade do imóvel, lhe garantirá uma boa renda, tão boa que atenua qualquer sentimento de pesar ....Aguardemos os próximos capítulos.
    Abraços, e bom fim de semana.

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    1. Marta é especial. Há nela uma dicotomia que acredito existir no comum dos mortais em “n” momentos e nos quais somos, enquanto humanos, capazes de sofrer e mesmo assim sentir algum alívio e talvez até mesmo lhe fazer acrescer mais um sentimento, o de culpa por aquele mesmo alívio sentido.
      Marta foi “desenhada” por mim no intuito de provocar sentimentos a quem lê (tentativa). O que no fundo acabo por tentar com todos os outros personagens.
      Seja o sentimento de pena, seja o de desagrado, seja o que for, que sintam algo neste vosso encontro com a personagem e acima de tudo que o sintam real.
      Abraço, muito obrigado e bom início de semana

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  3. Extraordinário talento o seu!
    Estou a adorar :)
    Tenha um excelente fim-de-semana, um abraço!

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  4. O ser humano tem tanto de bom como de mau. Quando enterrado será um anjo, por enquanto quiça, um homossexual, um mulherengo, talvez até uma mulher casada, Jaime não consegue dusfarçar o quanto não sabia sobre Rodrigo, e disfere maldade para o ar, quem sabe Duarte saiba um pouco mais e agarre o isco. A irmã, é uma apanhada, não se pode esperar mais.

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    1. Penso que terás sido a única a referir este ponto e foi pensado para retratar aquele sentimento social de ter que se classificar as pessoas, são brancos, pretos, católicos, protestantes, mais limpos, mais porcos e tão moralmente superiores… (sorrisos)
      Quando morto, talvez até mais para ficar bem no quadro, o dispo parece mudar um pouco para alguns, enquanto outros se mantêm fiéis à língua afiada nos seus comentários mesmo quando raramente é algo que lhes diga respeito.
      Quanto ao momento do enredo, a página está finalmente a mudar e a emoção está prestes a começar.
      O texto publicado hoje marca a mudança para um novo ritmo (espero - sorrisos).
      Um beijinho para ti

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  5. Mais um belo capítulo que muito gostei de ler.
    .
    Cumprimentos poéticos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  6. Este Jaime não me agrada nada. Ele até pode não ter nada a ver com com a morte do Rodrigo, mas que é muito estranho ele andar de volta do inspetor sempre a tentar "impor" a ideia de suicídio, é. E depois se ele é o ultimo a entrar em casa e o primeiro a sair, como sabe que o Rodrigo não dorme em casa? Vai-lhe bater à porta? Ou o Rodrigo ressona tão alto que ele ouve no rés-do-chão? E continua o mistério...
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. (muito sorrisos)
      Jaime (até ao momento, apenas porque não posso adiantar muito mais) é aquele tipo de embrulhos muito apelativos por fora, mas que se começar a tirar a fita e o papel de embrulho… vai muito provavelmente ficar desapontada.
      Em todo o caso, mantenha esse apontamento… vai ser útil para daqui a algumas páginas poder aferir se todo esse desagrado tem razão de ser (sorrisos)
      A apresentação dos personagens está concluída, tudo o que pode acontecer daqui para a frente acaba por ser um melhor conhecimento dos mesmos e acima disso o enredo a acontecer.
      Abraço e um início de semana inspirado

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  7. Olá João!

    Chegando para conhecer seu espaço, já me deparo com uma boa história.

    Adorei ler... Desejo-lhe uma semana iluminada.
    Abraços Loiva

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    1. Muito obrigado, volte sempre. Abraço e um bom início de semana

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  8. Olá, amigo João, o típico 'casos de família', até há pouco tempo havia um programa de televisão, diariamente aqui com esse título, Casos de Família! E esses rolos que você narra tão bem, eram corriqueiros, uma briga enorme nesses programas! Irmã contra irmãos, contra mãe, um acusando o outro violentamente. Tantas verdades nesse capítulo, imagino a novela toda!!
    Muito boa a narrativa, aplausos!
    Um ótimo fim de semana, bem que é meio difícil paz no mundo atualmente.
    Abraços, saúde, amigo!
    (obrigada pelo seu lindo comentário!)

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    1. Muito obrigado. Na minha tentativa de conto tento um pouco de tudo o que acabou de dizer, ou seja, há um enredo e há dentro deste, “casos de família corriqueiros” e premeditados no sentido de oferecer algum realismo à ficção.
      Uma semana inspirada. Abraço deste lado do oceano.

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  9. Um belo passo no caminho deste Conto. Promete.

    Abraço, Amigo
    SOL da Esteva

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    1. Muito obrigado, deixo um abraço e o desejo de uma semana plena de inspiração

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  10. Sempre narrativas bem construídas
    Gostei

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  11. Conversa entre Jaime e Duarte, onde todos os cenários são possíveis.
    Gostei da fluidez do diálogo.
    Bom domingo.

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    1. Olá!
      Amanhã espero conseguir voltar ao agendamento dos textos (tento não os fazer antes do fim do mês porque acabo por me enganar e publicar no lugar de agendar) e, entretanto, o enredo vai finalmente ser apresentado.
      Neste conto quis primeiro apresentar os personagens e apenas a seguir avançar para o enredo. Provavelmente pode não ter sido a escolha mais acertada, mas tudo o que vos ofereço são tentativas, experiências, exercícios de escrita.
      Os personagens foram apresentados antes do enredo e não durante/a acompanhar a trama por um motivo e apenas com o desenrolar da ação é que vou poder analisar se a minha escolha terá sido a mais correta…
      Mas,
      Finalmente,
      Vamos avançar…
      Um beijinho e uma semana inspirada

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  12. A narrativa está cada vez com mais interesse. Fico curiosa, o que é bom sinal. Gosto muito dos diálogos.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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    1. Muito obrigado, Graça, pela simpatia e pela presença.
      Um bom início de semana, tranquilo e com saúde. Um beijo e inspiração da boa.

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  13. Mais uns episódios que li até aqui.
    O que estará por detrás de tudo isto? Tudo é possível.
    Muito interessante o modo como desenrolas a trama.

    Beijinhos.

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    1. Muito obrigado, a trama está nesta fase ao virar da esquina (sorrisos)
      Beijinhos e boa semana

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  14. Essas divagações são tão usuais nestes momentos.
    As divagações e os xuxumecos.

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    1. Estou a sorrir. Vi nestes "xuxumecos" a forma de dar algum realismo ao "cenário"

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  15. Não faço a mínima ideia do que vai sair daqui...
    E até por isso estou a gostar.
    Boa semana, caro João.
    Abraço.

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    1. Muito obrigado pela simpatia. Abraço e uma semana plena de inspiração

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  16. E o mistério continua. O Jaime dá palpites e o Duarte tenta descobrir o que realmente aconteceu.
    Beijinhos

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    1. Penso que este texto marca a última página da primeira parte do conto, aquela usada para apresentação dos personagens dividida em dois “tempos”, uma apresentação inicial e o início de uma tentativa posterior de vos familiarizar com os mesmos.
      Não sei bem se já é claro quem o personagem principal será, acredito que sim.
      Quanto ao enredo, fiz por o manter adormecido e está na altura de o acordar… (sorrisos)
      Beijinhos e boa semana

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  17. O ambiente dos velórios aqui retratado. Regra geral exceptuando-se os familiares mais chegados, os outros comentam tudo e mais alguma coisa sobre o morto, o que deixou e não deixou, a sua vida, o que fazia e não fazia, chegando-se a esquecer, quase, o motivo por que se está ali...

    Conto a suscitar interesse e com um grande "suspense" o que é muito bom.

    Abraço
    Olinda

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    1. A escolha difícil de apresentar os personagens num velório, num cenário que desincentiva a leitura de quem teve um dia longo e difícil no seu dia a dia (sorrisos) teve também esse intuito, o de isolar os personagens num ambiente “viciado”.
      Os personagens não estão no seu ambiente natural, o que também pode permitir adiante um melhor conhecimento dos mesmos e quem sabe uma ou outra surpresa.
      Agradeço a simpatia e a presença. Um abraço e um bom início de semana

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  18. Rodrigo que eu conheço, sempre controlado, sempre com um sorriso, concentrado no que fazia.

    Há tantos casos de pessoas que nos surpreendem pelo comportamento inesperado...
    Até crimes violentíssimos.
    O ser humano é melindroso, muitas vezes
    Tenha dias abençoados!
    Abraços fraternos

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    1. Verdade o que diz, mas neste ponto da história não posso comentar muito mais (sorrisos).
      Muito obrigado, abraço fraterno deste lado do Atlântico

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  19. andei a ler os atrasados...
    muito bem escrito.
    e vamos continuar a seguir o trama...

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    1. Muito obrigado. Espero que continue a gostar. Abraço e bom fim de semana

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  20. Tenho gostado e muito da destreza com que se fica preso no texto, como queremos cultivar um dom preciso que acabamos de.perder ou que nos esquecemos, fico aguardar novos ep. Estou delirante abraço JP

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    1. (muitos sorrisos)

      Agradeço a presença e fico muito contente que estejas a gostar da minha telenovela mexicana.

      Abraço e um bom fim de semana

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