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“Quando a vida não te pertence – Kate Miller (Texto 35 de 35)

Há pessoas transparentes, perfeitos livros abertos que a muito custo conseguem esconder um momento de simples desagrado ou um triunfo, por mínimo que seja, Vera Nunes e Cunha não era uma dessas pessoas. Duarte recorda-se da primeira vez que a viu, no velório e depois disso, quando a voltou a ver à porta do prédio de Rodrigo, ainda nesse mesmo dia. Uma primeira Vera que oferecia uma segurança que não parecia ter e uma segunda Vera desorientada, frágil e perturbada. A realidade caiu sobre ele pela certeza e consciência que a verdadeira Vera será pouco mais do que uma perigosa vendedora de ilusões que o terá muito provavelmente conseguido ludibriar até ao arrancar da viatura.   Duarte corre como se a sua própria vida disso dependesse e segue em direção ao seu carro, entra, senta-se e arranca a grande velocidade em direção a casa, onde o seu lugar de estacionamento permanece vago. Avança apressadamente e corre pelas escadas acima, entra, agarra nas chaves suplentes da casa de Rod...

“Quando a vida não te pertence – Da cumplicidade ao amor, da união à separação, Parte III” (Texto 34 de 35)

- Eu sei que parece pessoal, mas o que é que correu mal na vossa relação? - Parece-lhe pessoal? - Ironia a esta hora não fica bem Vera. - Não consegui aguentar a carga negativa que o acompanhava numa base diária. Se inicialmente havia a empatia, a atração sexual e a cumplicidade de ser a única pessoa neste mundo a estar no mesmo barco e estarmos ambos tão sozinhos… Uma lagrima escorre-lhe pelo rosto. - Depois senti que me estava a levar com ele para o fundo do poço e tentei, mas deixei de conseguir. Tínhamos planos para fugir juntos, mas não é fácil chegar a uma verba que nos permita ir para onde a liberdade não será tirada e será que quero andar constantemente a fugir e longe do meu país? Duarte, não quero. - Se eu conseguir arranjar-te um acordo que te dê essa liberdade? - Duarte, é tudo o que mais quero, livrar-me deste pesadelo. Ela mostra-se relutante apesar do que acabou de afirmar. - Algum problema? Saca um telemóvel do bolso do casaco. - Toma, é o telemóv...

“Quando a vida não te pertence – Da cumplicidade ao amor, da união à separação, Parte II” (Texto 33 de 35)

Caminharam pela noite dentro, sem rumo certo e ela claramente perturbada e de voz trémula repetiu-lhe teimosamente: - Tem a certeza de que ele tenha sido assassinado? Tem provas disso? Quem são essas testemunhas? - Há fortes indícios, sim, infelizmente, como deve compreender, não lhe posso revelar. - Nos últimos dois anos, eu e o Rodrigo tivemos um relacionamento, que acabou por não resultar, mas ficámos amigos. Por isso, sim, essa parte é verdadeira. Não o assumimos porque não podíamos ser vistos juntos. - Como assim? - Eu não tenho provas do que lhe vou dizer a seguir, mas é muito provável que alguém tenha elementos que nos incriminem nos acontecimentos que levaram à insolvência da cadeia de hotéis.   Duarte permaneceu em silêncio e deixou-a falar. - Fomos contratados pelo acionista maioritário para esconder a origem ilícita de determinados ativos financeiros e bens patrimoniais. O verdadeiro esquema, a auditoria nem sequer descobriu. Eu executei, mas foi o Rodrig...

“Quando a vida não te pertence – Da cumplicidade ao amor, da união à separação, Parte I” (Texto 32 de 35)

Caminha em direção a casa e deixa-se agredir pelas baixas temperaturas sem se preocupar em defender-se. Pensa no que o amigo de Lisboa lhe tinha dito e sente que continua sem respostas. “Tens provas do envolvimento dele em negócios ilícitos? Tens provas de qualquer ameaça contra a vida dele? Tens alguma prova concreta do que quer que seja? Dizes que era teu amigo, mas porra, Duarte, tudo o que me tens transmitido é que não o conheces. Vai, apresenta queixa à PJ e não te esqueças de entalar-me a mim também por te ter ajudado com esta merda. Uma mão cheia de nada, foi um acidente ou o gajo fartou-se e atirou-se daí abaixo”. Agarra no telemóvel e liga para um número que tinha conseguido obter através de um colega. - Vera, fala Duarte Nascimento, eu sei que não são horas, mas há uma testemunha que alega saber da sua relação com o Rodrigo, e uma outra que diz a ter visto a sair do imóvel na hora e no local do crime. “Sim, Duarte, estás cada vez mais ético de dia para dia. Continua assim e v...

“Quando a vida não te pertence – Os traficantes, Parte II” (Texto 31 de 35)

Com pouco mais de 4 horas dormidas nas últimas setenta e duas, mal alimentado e já com muitos quilómetros feitos, a tolerância de Duarte ao álcool acabou por mantê-lo pela segunda imperial. O bar permanecia vazio e os poucos clientes que por lá circularam já tinham regressado às suas vidas, com o dono do estabelecimento à espera de se livrar daqueles dois, que nem despesa estavam a fazer, para encerrar e ir para casa. A partir das onze e meia da noite, Diana Krall passou revisão a uma boa parte do seu extenso reportório. - E onde é que ele guarda o dinheiro das vossas atividades? - Era-lhe transferido para uma conta num paraíso fiscal, sem sequer entrar no país. Dizia-me que estava a preparar o salto daqui para fora, que esta vida não lhe servia. Fosse isso quando fosse. - E em dinheiro? - Nada em dinheiro. Sei que ele arranjou quem lhe fizesse um novo passaporte, com uma nova identidade, que terá conseguido pagar com dinheiro próprio. A mim disse-me que a conta não era par...

“Quando a vida não te pertence – Os traficantes, parte I” (Texto 30 de 35)

Por mais do que uma vez achou estar num beco sem saída e umas outras tantas pensou, não sem ironia, que o mais importante acabava por ser o dia não estar frio. “Mas que raio é que eu estou a fazer?” “A estragar a minha própria vida muito possivelmente”. Num monólogo em desespero de causa de perguntas sem respostas, a deixar em Duarte um sentimento de frustração e desalento. Sentia agora que não conhecia Rodrigo e não sabia muito bem em quem acreditar ou no que acreditar. Rende-se aos factos, no sentido de Pedro ter acertado num ponto frágil. Os extratos bancários não mentem e se não tinha como confirmar os pagamentos mensais pela criança ou outro tipo de gastos com o filho, a verdade é que tinha a perfeita lembrança do grande arranjo que o carro sofreu antes deste o dar à troca pelo novo e nos registos bancários não encontrou despesa alguma de relevo na meia dúzia de movimentos mensais. A conversa com Pedro acabou por prolongar-se por mais uma hora e meia e Duarte achou estar...

“Quando a vida não te pertence – O irmão, Parte II” (Texto 29 de 35)

A hora do almoço acabou por se prolongar sem que nem um nem outro tenham comido o que quer que fosse, limitando-se a permanecer num banco de jardim em frente ao escritório onde Pedro trabalhava. - Desculpa, mas tenho de te perguntar isto, respondes se quiseres, mas quando tiveres de prestar depoimento vais acabar por ter de dizer alguma coisa. - Diz. - Porque é que lá foste acima e qual a razão para já não lá estares quando o incidente aconteceu? - Recebi uma chamada da escola do Afonso a dizer que o estavam a levar para o hospital, caiu e partiu o braço em dois lados, podes confirmar. Duarte acena afirmativamente e pediu-lhe para continuar. - A Rosa estava furiosa, ele não pagava o valor que se tinha comprometido para as despesas com o Afonso faz mais de seis meses, mas não foi isso que me fez largar o trabalho e ir lá ter. - Então o que foi? - Ele mandou-me uma SMS a pedir para dar dinheiro à Marta e a dizer uma quantidade de coisas a tentar puxar ao sentimento. Tente...

“Quando a vida não te pertence – O irmão, Parte I” (Texto 28 de 35)

Falaram um pouco mais, mas já numa postura mais descontraída. Ela contou-lhe as recordações mais antigas que tinha de Rodrigo, a falta que o irmão lhe fazia e o quanto arrependida estava do rumo dado á vida e do mal que tinha feito aos que dela gostavam ou do mal que tinha feito a si mesma. Quando Marta se despediu, Duarte ficou ainda alguns minutos sentado a olhar o mar. O café tinha feito o que dele se pretende, apesar de começar a achar estar a precisar de um outro. As duas horas que conseguiu dormir estavam a revelar-se manifestamente insuficientes, mas, entretanto, já tinha combinado estar com Pedro durante a hora de almoço deste. Perante a hipótese de homicídio, algo que em momento algum tinha pensado como possível, Pedro não foi capaz de mentir sobre que tema fosse e revelou-se um livro aberto. O casamento com Rosa estava acomodado e desgastado pelos anos e ele aceitou a traição. - Já vivi muito Duarte e não é o sexo que me vai fazer amar a Rosa menos. É um amor diferent...

“Quando a vida não te pertence – A irmã, Parte II” (Texto 27 de 35)

Duarte deixou-a acalmar-se um pouco mais, perguntou se ela queria ir tomar o pequeno-almoço a algum lado. Ela acedeu, limitando-se a pedir apenas algum tempo para tomar banho e vestir-se. No caminho para a pastelaria, ela perguntou-lhe: - Vais prender-me? - Se me estiveres a contar a verdade não vejo razão para isso, mas não prometo que não sejas chamada a prestar declarações. Temos de descobrir o que aconteceu lá em cima. - Claro, entendo. Permaneceram em silêncio enquanto caminhavam e mesmo durante o pequeno-almoço. Duarte, a seguir, conduziu-a junto ao mar até encontrar um local onde fosse possível estar à conversa com a privacidade necessária. - Se não foi o Jaime, quem é que foi o homem que esteve com ele no telhado? - Pode ter sido o Pedro, porque o vi a chegar quando eu estava a sair, não sei se ele reparou em mim, mas penso que não. E o que vou dizer a seguir é algo que foi mantido em segredo estes anos todos. Ela sente a pressão e o corpo a tremer. - Acredite...

“Quando a vida não te pertence – A irmã, Parte I” (Texto 26 de 35)

O regresso a Lagos aconteceu pela madrugada adentro e talvez tenha sido o trajeto mais rápido que Duarte alguma vez fizera entre as duas localidades. Estacionou o carro e entrou sorrateiramente no apartamento de Rodrigo para deixar o computador, não fosse Jaime dar pela sua chegada. Chegado finalmente a casa, conseguiu dormir ainda algumas horas, apenas as suficientes para fazer tempo de não perder Marta que lhe tinha dito estar a dormir num quarto arrendado nas imediações da igreja. A caminho, envia uma SMS ao seu superior a solicitar dois dias de férias para resolver uns problemas familiares. Chegou pouco depois das nove, identificou-se como polícia e conseguiu entrar. Bateu á porta do quarto e esta ainda demorou a abrir. Voltou a bater à porta e ouviu um “Vai já” num gritar mal-humorado de quem ainda não acordou. - Duarte? - Desculpa, não queria acordar-te a estas horas, mas temos que falar. Posso entrar? - Por favor, entra e senta-te. Posso oferecer-te apenas a cama. ...

“Quando a vida não te pertence – Tentativa falhada” (Texto 25 de 35)

Ainda naquele início de noite, mal Vera se afastou, Duarte troca breves palavras com um amigo de Lisboa, entra no carro e segue nessa mesma direção. Ao chegar a Lisboa, consultou um amigo de infância, que de pirata informático acabou por terminar recrutado pela polícia judiciária. - Nascimento, tu estás a arranjar-me problemas. Que merda é esta? Isto nem parece teu, caralho. Duarte assentiu com a cabeça. - Ajuda-me. O amigo calçou luvas, ligou o portátil de Rodrigo e começou a trabalhar em silêncio enquanto Duarte dava voltas à sala a lutar contra o sono, acabou por sentar-se no sofá e dormitar por algumas horas. - Nada, gajo. Não encontro nada, é o laptop daquele tipo de pessoa que não faz absolutamente nada de errado, ou daquele tipo de pessoa que tem demasiado a esconder e nesse ponto não estará ao meu nível. - No caminho para cá cheguei à fala com a cunhada e por esta apanhei também a irmã, ambas estiveram no telhado, mas há muitas pontas soltas, nada faz sentido. Ros...

“Quando a vida não te pertence – Que família…, Parte II” (Texto 24 de 35)

  - Meu maninho,   só te queria ver… - Não tenho nada Marta, ainda agora a Rosa veio cá para me pressionar que tenho as prestações do Afonso em atraso. Reforça ele que a interrompe com impaciência, desgastado ainda pela conversa anterior e a acabar por falar ao mesmo tempo desta. - Meu querido menino, não me estás a ouvir. Por favor, deixa-me falar. Não quero dinheiro. Não quero o teu dinheiro. E não entendo o que tu e o Pedro conseguem ver naquela gaja, tirando a vulgaridade. Há mais mulheres na terra, sabiam? - Desculpa, avança e diz então, tenho de acabar isto e não está a correr bem, há folhas a entupir até ao cú de judas, não consigo imaginar como é que isto ficou assim. - Só necessito de um sítio para ficar, um qualquer sofá ou colchão chega. O Jaime arranjou-me o que fazer. Ele gesticula irado. - Marta, eu não acredito, estás em recuperação, a dependência é para a vida e tu vais trabalhar com um traficante? Foda-se Marta, raios te partam. Não sei o que te d...

“Quando a vida não te pertence – Que família…, Parte I” (Texto 23 de 35

A contrariar as previsões meteorológicas, apesar de frio, o dia mantém-se solarengo acompanhado apenas por uma muito ligeira brisa. Rosa sente-se irritada e desce furiosamente aquelas escadas. Em caminho pega no telemóvel e queixa-se ao marido da conversa com Rodrigo e passa todo o tempo da duração da chamada aos gritos, como se Pedro fosse o responsável. - O teu irmão é um merdas, um egoísta, com um ego do tamanho do mundo e um ingrato depois de tudo o que temos feito por ele. Grita qualquer outra coisa impercetível para depois desligar o telemóvel com um “anormal” e imediatamente à saída da porta, pela surpresa ao cruzar-se com Marta, solta um “O que é que tu fazes aqui?” - Não que te diga respeito, mas vim visitar o irmão que ainda tenho. Rosa solta um riso histérico em sinal de provocação e um “sim, claro” que Marta escolhe não ignorar ao lançar-lhe um olhar fulminante. - Isso é suposto fazer-me medo? Vai lá mendigar ao teu irmãozinho que se está a cagar para ti como o ...

“Quando a vida não te pertence – Telhados de vidro” (Texto 22 de 35)

É bem humano protelar para depois as tarefas que nos causam enfado, escolher uma qualquer outra coisa para justificar o não fazer daquela outra que estamos a procrastinar e aguardar por melhores dias ou até ao dia imediatamente anterior àquele em que tem de ser feito ou apresentado, seja no dia a dia, seja nos estudos, seja no trabalho, por forma a fazer face a todas as outras prioridades envolvidas. Rodrigo não sentia prazer particular em subir ao telhado e esta parte não era um embuste, não porque não fosse capaz, não porque sofresse de vertigens ou sequer por considerar um trabalho menor. Muito simplesmente não era o tipo de tarefas em que gostasse de gastar o pouco tempo disponível que tinha. E assim foi adiando até ao fatídico dia em que, já em pleno inverno foi pressionado a ir limpar ou a contratar alguém para limpar o maldito algeroz e que, no caso do seu prédio, está disposto numa zona de fácil acesso, com um grau de dificuldade que se pode considerar inexistente, a menos ...