“Quando a vida não te pertence – Rosa, Pedro Lobo e Duarte Nascimento” (Texto 13 de 35)


Lá fora, o frio fez-se imediatamente sentir mal os últimos raios de sol deixaram o contato com o solo, num fim de tarde que se mostra agora cortante e desolador. Lá dentro, as conversas de circunstância parecem já não fazer sequer sentido.

- É bom saber que o meu cunhado tinha amigos.

Rosa esboça um sorriso cansado, olha para Duarte e pergunta se iria estar presente na cerimónia a ter lugar na manhã do dia seguinte.

- O dia já vai longo e estamos a pensar fechar, ir jantar e dar este dia por encerrado.

- Sim, claro, pensei que ficassem um pouco mais e estava apenas a tentar não os deixar sozinhos.

- Sabe? Um dos problemas com estes momentos é que todos aqueles que nunca nos deram atenção, que nunca gostaram verdadeiramente de nós, vêm prestar a sua última visita. Como se viessem certificar-se que morremos efetivamente.

Duarte abriu muito os olhos e ela apercebeu-se de o estar a constranger.

- Não estou a falar do Duarte, desculpe, não era essa a intenção. Estou a falar de pessoas como a minha cunhada, a sanguessuga. Estou a falar de outras como a cabra da dona da empresa para quem ele agora trabalhava e que explorava o seu trabalho qualificado com o ordenado mínimo, enquanto ela anda de mercedes e compra roupa nas melhores lojas. É impossível as autoridades não verem que aquela empresa parece uma lavandaria, mas ninguém faz nada. O Duarte viu aqueles sapatos?

Abanou a cabeça irritada e com olhos estranhos e tresloucados, talvez apenas pelo cansaço de um dia desgastante.

- Estou também a falar daquela colega que curiosamente, trabalha agora para a empresa que ficou responsável pelo processo de insolvência, o que é que ela veio aqui fazer? O meu cunhado, que a sua alma descanse em paz, sentia-se vigiado, a depressão estava a torná-lo paranoico, disse-lhe várias vezes para procurar ajuda, não que me tenha alguma vez escutado.

- Rosa, aqui não, por favor.

- Pedro, o Duarte era muito possivelmente o único amigo que o teu irmão tinha, pelo menos, o único sem interesse em obter alguma coisa dele.

Pedro agarrou-a e abraçou-a e ela voltou a chorar.

- Desculpe, Duarte, nós vamos encerrar a sala. Aguardamos, então, pela sua presença amanhã. O nosso obrigado, pela amizade e preocupação, o meu irmão teria merecido melhor sorte.

- Sim, vamos, o nosso querido filho está à nossa espera.

Duarte refere ainda a surpresa na depressão de Rodrigo.

- É normal, ele escondia bem, fazia anos que o meu cunhado lutava contra a depressão em silêncio. Mas, ainda assim, nunca nos passou pela ideia este desfecho.


Comentários

  1. Parece-me um encadeamento que faz sentido
    :-)

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  2. O mistério, ora parece querer dissipar-se, ora se adensa de novo, boa táctica para me manter a curiosidade aguçada.

    Boa tarde. João

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    1. Ainda não agendei o próximo texto, mas tenho quase a certeza de que o ritmo está para mudar (sorrisos)
      Um beijinho para ti

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  3. Conversas próprias num velório....principalmente entre aqueles que lá vão para " serem vistos "
    Não imagino o que virá, mas assim é bom...são muitos os possiveis cenários. Um beijinho, Amigo e até ao próximo capítulo
    Saúde para todos
    Emilia

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    1. Muito obrigado. Penso que só amanhã vou conseguir passar às visitas, mas assim vou poder estar um pouco mais atento até.
      As conversas não são inocentes e aqui e ali há pormenores que vão sendo ditos e há caraterísticas dos personagens que vão sendo reforçadas. Foi uma experiência, o passar de uma apresentação um pouco ligeira para um caminhar que vai tentando oferecer elementos para conhecer os personagens enquanto tentei manter a ilusão do caminho a seguir e cuja porta penso estar prestes a ser aberta…Um beijinho de gratidão e o desejo de uma semana tranquila e com saúde.

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  4. E nestas conversas do velório o Duarte ficou a saber mais alguma informações sobre o Rodrigo.
    Beijinhos

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    1. Duarte, o pobre, é capaz de estar a pensar que saiu do velório com menos conhecimento do que quando para lá entrou… (sorrisos)
      Um pouco mais a sério, nesta fase do texto, após esta nossa troca de ideias aqui pelos comentários, estou a tentar não fazer ainda um balanço se esta tentativa de abordagem a nível de início de conto terá sido a mais adequada dado ter um ambiente que considero “hostil” para quem lê, com “n” momentos que podem causar desconforto e desincentivar a leitura pelos temas versados que são por si só pesados.
      Em todo o caso, houve consciência e premeditação para que o desenvolvimento possa tentar surpreender e cativar (espero eu)
      O meu muito obrigado, beijinhos e uma boa semana

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  5. Começa a fazer sentido, surgindo esse componente da depressão à história, que aliás, está sendo muito bem narrada. Essa doença já é considerada o mal do século. Segundo estimativas de estudos mais recentes, a depressão deve, dentro dos próximos 20 anos estar em primeiro lugar entre as doenças que atingem a população mundial. Acompanho, curiosa, a sua história, João.
    Abraços

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    1. O blogger não está a publicar todas as minhas respostas e tive de voltar a responder… mão sei o que se passa.

      Em todo o caso, quando pensei pela primeira vez neste conto pensei numa critica social a retratar a depressão ao considerar que a saúde mental necessita de ter a atenção que merece e deixar de ser tabu e sofrida em silêncio.
      Muito obrigado, abraço e boa semana

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  6. Respostas
    1. Este momento tinha que acontecer… (sorrisos)
      Abraço e boa semana

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  7. Li este episódio três vezes e cada vez fico mais baralhada. A ser verdade o que a cunhada conta, como ele conseguiu esconder durante anos uma grave depressão de um inspetor com quem convivia quase diariamente quando se sabe que um bom inspetor nunca está totalmente relaxado e nenhum pormenor lhe escapa. Eu já tive uma grave depressão há muitos anos atrás. Naqueles tempos nem isso lhe chamavam diziam que eu era uma nevrótica, e encharcavam-me em calmantes e sedativos. Estive quase a acabar com a vida. Fui internada no hospital, puseram-me a dormir durante oito dias e depois e quando acordei tive a sorte de ser tratada por um psiquiatra maravilhoso que descobriu a origem da depressão e me tratou. Porque se passou comigo, não acredito que alguém possa sofrer assim e fingir para toda a gente que está tudo bem, por muito bom ator que seja, durante anos. Há sempre um momento ou outro em que se descontrola.
    O Rodrigo até pode ter-se suicidado, mas cada vez tenho mais dúvidas sobre isso.
    Enfim digamos que o mistério se adensa...
    Abraço e saúde

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    1. Desta ver acontecer com a Elvira… não sei o que se passa com o blogger e não publicou o meu comentário às suas palavras…

      A parte boa do meu distanciamento (entre o tempo já decorrido em que o escrevi e a data da sua publicação) é que me permite tentar interpretar a razão pela qual segui este caminho com o desafio de tentar não dizer nada que adiante em relação ao que está já apresentado.
      Ora bem,
      “É normal, ele escondia bem, fazia anos que o meu cunhado lutava contra a depressão em silêncio.”
      No texto um pouco mais á frente (o 15 acho) ficámos a saber pelo Duarte que Rodrigo em jovem terá tido uma depressão e mesmo pensamentos suicidas.
      Enquanto família Rosa terá informação adicional (ou não) e pode também referir-se à depressão que o Rodrigo teve em jovem e que pode ou não ter ultrapassado na totalidade ao ponto de em adulto limitar-se a controlar algo, cujos sinais, já tem obrigação de conhecer.
      Pode também haver outros motivos que a Elvira poderá tentar adivinhar após o texto que vou publicar… amanhã (sorrisos).
      Elvira, um abraço especial porque eu nunca a deixaria sem resposta… só por isso leva um beijinho também.

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  8. Sem papas na língua, a Rosa! O que estará por detrás de tanta animosidade? São coisas que se podem pensar mas dizê-las em voz alta num velório é impensável...
    Aos poucos vamos obtendo mais informações sobre o Rodrigo. Foi aflorada a tese da depressão, doença verdadeiramente incapacitante...
    Abraço
    Olinda

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    1. A Rosa foi desenhada para ser uma força da natureza e ter uns quantos “defeitos” (e outras tantas virtudes) porque o ser humano tem de tudo, defeitos e virtudes apesar de haver pessoas que parecem conter uns mais do que outros porque os conseguem potenciar por vezes com a noção que estão a exibir virtudes.
      Desde as primeiras linhas que achei que Rosa merecia destaque (o destaque que se calhar acabei por não lhe dar – só para vos confundir um pouco – sorrisos). Eu sei que muito provavelmente apenas lhe conseguem ver os defeitos porque os tenho estado a acentuar, mas… há por aqueles lados muita luta e muito potencial, se ao menos ela o deixasse visível… (sorrisos)
      A tese da depressão é um tema que não me arrependo de ter colocado em cima da mesa porque a luta é real e cada vez mais, á nossa volta, milhares lutam em silêncio, incompreendidos e sozinhos.
      Relativamente ao enredo, é claro que eu quis conduzir quem ler por um caminho onde todas estão abertas (suicídio/acidente/outro) e penso que não estou a adiantar nada, mas até ao momento, nada de oficial confirma nem a depressão nem o suicídio.
      O que é que sabemos?
      Sabemos que as pessoas tendem a falar do que não sabem, sabemos pelo próprio que em jovem teve tais pensamentos e o facto da família pensar o que pensa pode tão só estar motivado por esses conhecimentos de um passado algo distante ou,
      Por algo que ainda não se tenha tido acesso.
      Muito obrigado, abraço e boa semana

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  9. Rodrigo pôde ter morrido das mais diversas formas, mas o autor há de
    revelar com o tempo. Depressão? Um dado novo.
    Conversas de escarnio e maldizer fazem parte dos velórios,
    A Rosa fala sem medos. Aguardemos!
    Boa noite,

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    1. Acabei de mencionar uns quantos pontos na resposta ao comentário da Olinda quando a Céu parece que estava a ler os meus pensamentos ainda por comentar (sorrisos)
      Eu quando escolho as caraterísticas de um personagem não tenho por hábito pensar em “A” ou “B”, mas escolho as caraterísticas físicas e psicológicas que considero adequadas para tentar oferecer realismo á mesma. Escolho muitas das vezes dados informativos que nem sequer chego a usar… que tipo de música gosta, o que é que gosta de fazer nos seus tempos livres, qual é a usa cor favorita? O prato favorito? Eu necessito conhecer o personagem… se depois o consigo concretizar… isso já é uma outra história (sorrisos)
      Por vezes criar um personagem que seja irritante ou que motive desagrado pela “pessoa” que é, acaba para mim por ser mais gratificante do que eu personagem em relação ao qual quem lê acabe por ficar indiferente…
      O personagem Rosa simboliza para mim aquele tipo de pessoas, homens e mulheres, com um potencial para a grandeza enorme, mas que por vezes, seja para tentarem ser “vistos”, ou outro motivo qualquer, potenciam tão somente a visualização dos defeitos que outros, conscientes das suas limitações/imperfeições, escolhem esconder/não tornar visíveis.
      E a minha luta pela visibilidade que queria dar a Rosa foi real no sentido que hesitei quanto ao seu verdadeiro papel no conto e continuo a acreditar que é uma personagem que merece entrar na história e quem sabe, ter tido até mais relevo (teremos de ler para saber - sorrisos)
      Agora,
      Passando a algumas confissões (sorrisos)
      Assim, já após saber o que queria contar e os primeiros caminhos a percorrer.
      Eu já estava a contar a história a partir de um velório e nunca deixei de estar consciente do peso implícito… e por essa mesma razão, num primeiro momento, não quis tornar o enredo ainda mais pesado e alongar-me como acabei por me alongar, entre a depressão e o suicídio
      Simplesmente,
      Quando se quer ter todos os caminhos em abertos… senti que não tinha outra escolha.
      E tudo isto para dizer que a a minha expetativa recai sobre os vossos pensamentos a partir daqui.
      O novelo de lã vai começar finalmente a ser desenrolado… já não era sem tempo (sorrisos) e estou muito curioso para ler as vossas próximas reações.
      Um beijinho, Céu, uma semana plena de inspiração e tranquilidade para si

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  10. "... aqueles que nunca nos deram atenção, que nunca gostaram verdadeiramente de nós, vêm prestar a sua última visita."

    É com uma falsa solidariedade com propósitos específicos, muitas vezes na sociedade. Como acontece tal falsidade despistada de condolência.
    Tenha dias de paz, João!
    Abraços fraternos

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    1. Muito obrigado. São sempre momentos difíceis para quem sente a dor, para quem perde e com uma carga emotiva e de cansaço muito grande para uns e uma ideia de marcar presença para outros e ainda haverá muito certamente os curiosos…
      Abraços fraternos, muito obrigado.

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