“Quando a vida não te pertence – O Apartamento, Parte II” (Texto 18 de 35)

 A chuva estava de regresso com pingos isolados e grossos a cair aparatosamente no chão e o vento frio vindo do Norte fazia-se sentir numa noite sem lua.

Duarte está cansado e confuso e questiona os seus próprios juízos. Coloca em dúvida este seu impulso, ao ponto de quase acreditar que esta insanidade apenas pode ser justificada pelo recusar-se a aceitar que o amigo morreu ponto.

E no fundo, Rodrigo morreu, ele, Duarte, sente a dor pela perda de alguém que já fazia parte do seu dia a dia, alguém que não tornaria a ver. "Não é intuição, até porque não há nada para intuir".

Prestes a entrar no seu prédio decide dormir sobre o assunto, repensar todos os factos e acabar por aceitar as evidências.

Entra em casa e quando se presta a largar as chaves no pequeno cesto que mantém à entrada, dirige-se para o aparador da sala e abre uma das gavetas. Encontra o que procura e se rápido pensou, mais rápido executou, apressando-se a sair de casa de luvas calçadas em direção ao apartamento do prédio do lado, com a discrição e atenção de quem não quer ser apanhado.

Faz por se convencer com um “se lá estiver a carteira que Marta disse ter deixado, venho-me embora e aceito o que aconteceu”.

Encontra a casa despida de mobiliário, o mesmo que restava da última vez que Duarte lá estivera. Sem sinais da carteira e sem sinais imediatos de alerta.

Mas havia algo mais que lhe estava a fazer confusão, a ausência do telemóvel do amigo. Rodrigo até a correr o mantinha numa bolsa plastificada presa ao braço e do auto de apreensão e do termo de entrega dos bens á família, que tivera o cuidado de consultar quando esteve na esquadra, não constava qualquer telemóvel, inteiro ou ás peças.

“O computador”.

Leva as mãos ao céu em sinal de desespero. “Podem ser provas, não posso mexer”.  Anda de um lado para o outro hesitante. Pensou em falar com o chefe, mas continuava com uma mão cheia de nada. ” E mesmo que consiga obter um mandato, e se for já tarde demais?”.

Em cima do aparador estava um envelope por fechar e dentro deste, dez mil euros em notas de quinhentos, com meia folha de papel A4, rasgada e com a seguinte mensagem “Marta, eu acredito e quero acreditar em ti, a felicidade está a um milímetro de distância, acredita tu também”. Duarte deixou-o onde o encontrou, mas sentiu que necessitava de sentar-se, as pernas pareciam falhar-lhe e o coração bateu mais forte.

“Não pode ser isso”.

Recompõe-se, levanta-se e abre o guarda fatos, mas lá só viu os fatos que Rodrigo deixara de usar quando perdeu o emprego anterior.

“Será que o irmão e a cunhada já por aqui passaram?”

“Não, ou o dinheiro não estaria provavelmente ainda dentro do envelope”.

Abre as portas de cima o armário e encontra o trolley de viagem, sente-lhe o peso, puxa-o para baixo. Abre outra das portas e encontra apenas cobertores dentro de sacos de plásticos hermeticamente fechados. Abre a última das três portas e encontra um segundo trolley, que dado estar pesado, retira-o também.

Com o máximo de cuidado, por forma a não colocar em perigo nenhuma eventual prova, analisa cuidadosamente o conteúdo de ambas as malas e por entre a roupa e calçado, encontrou dois passaportes, o de Rodrigo e outro com a foto deste, mas dos Emirados Árabes Unidos e cinco outros envelopes, um pouco maiores, do que o deixado a Marta, com um valor considerável em dólares, euros e até liras turcas, que Duarte não contou mas que calculou lá estarem facilmente 500 mil em euros.

Agarra no telemóvel, escolhe um nome da lista, liga e articula um: “tenho um problema”.

Comentários

  1. Passando, lendo, gostando, acompanhando.
    Aqui zona de Lisboa também está a chover.
    .
    Cumprimentos poéticos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  2. Rodrigo, uma caixinha de surpresas, ainda assim, quero acreditar que há explicação para estas descobertas, afinal, Rodrigo trabalhou numa grande empresa com remuneração a condizer com a posição que ocupava, digo eu...

    Bom dia, João

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    1. Sim, pode haver (ou poderia haver) pelo cargo anterior agravado pelo facto de ter até morado no hotel durante algum tempo não especificado. Pode significar que ele não guardava o dinheiro debaixo do colchão, escolhia uma zona um pouco mais acima (o armário por cima do guarda fatos… (sorrisos)
      Um beijinho para ti

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  3. Um bom narrador é assim: leva-nos atrás da história e instiga cada vez mais a nossa curiosidade. É o que me está a acontecer a mim.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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    1. A sua simpatia não tem limites. Muito obrigado, um beijo, com o desejo que tenha uma semana tranquila e inspirada.

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  4. Ai, ai! O mistério adensa-se. O João sabe bem prender o leitor.
    Que virá aí?

    Boa semana!

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    1. A Teresa numa publicação dela falava das amizades virtuais e no fundo é verdade, mesmo se a blogosfera acaba por ser uma rede social diferente, eu, por estes lados, travei amizades com já mais do que uma década e estes exercícios de escrita faziam muito pouco sentido sem essas amizades
      Obrigado pela simpatia e entre as três vozes que habitam em mim (a minha, a do anjo e a do diabinho) uma delas obriga-me a escrever que este conto é transparente desde o primeiro texto… (sorrisos)
      Um beijinho e boa semana

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  5. Uma história intensa, de leitura arrebatadora.
    Já conquistaste os teus leitores, João.

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    1. A amizade faz-nos cair em exageros (sorrisos) Obrigado por estares aí desse lado. Um beijo para ti e boa semana

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  6. Estou a gostar da história.
    E da excelente narrativa que a constrói.
    Boa semana, caro João.
    Abraço.

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  7. O mistério adensa-se e cada vez me convenço mais do seu assassinato. Parece-me que o Rodrigo tinha uma vida dupla. Certo se torna agora que ele levava uma vida dupla. Um correio para lavagem de dinheiro? Talvez do tal senhor que lhe prometeu torná-lo muito rico? Ou dinheiro dos hotéis crime do qual tinha sido ilibado?
    Bom fico por aqui, que não me ocorre nada de jeito e já estou à espera do próximo.
    Abraço, saúde e uma boa semana Santa.

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    1. Desde o início a minha tentativa acabou por ser tentar mostrar 3 caminhos, “suicídio, acidente, outro”.
      Ora, se a escolha está a recair sobre o “outro”, quem terá ajudado Rodrigo a chegar mais rápido ao solo? (sorrisos) E quem é que estava afinal com ele no telhado? não têm de responder.
      Abraço, saúde e uma semana tranquila e inspirada

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  8. Já não estou a crer no suicidio, mas, com duas malas prontas e com tanto dinheiro? Talvez se preparasse para fugir....
    Estou como a Elvira...melhor esperar pelo próximo capitulo, embora me pareça que o Rodrigo estava metido em alguma " sujeira " Tu nos dirás, Amigo! Beijinhos e saúde!
    Emilia

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    1. Eu não digo nada a ninguém (sorrisos)
      Mas há muitas questões em cima da mesa, entre as quais o saber até onde Duarte estará disposto a ir?
      Um beijinho, obrigado pela presença e bom início de semana

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  9. Respostas
    1. Fugir para a onde? O homem já estava no Algarve o ano todo, o que é que poderá querer mais? (sorrisos)

      Abraço e boa semana

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  10. Vim reler o capítulo enquanto a Margarida dorme, e encontrei já as respostas ao comentário anterior.
    Então numa segunda leitura, a carteira da Marta não estava lá, mas o envelope com dez mil euros em dinheiro. Logo a aflição dela a querer ir ao apartamento, leva-nos a pensar que ela saberia que o irmão lhe tinha deixado o dinheiro, dez mil euros é muito dinheiro para uma alma perturbada, mas custa-me a crer que ela matasse a sua galinha dos ovos de ouro.
    Também me chamou a atenção a frase do Duarte, "Não pode ser isso". O que lhe teria vindo à cabeça que o levou a procurar e achar as malas do dinheiro?
    Meio milhão de euros em envelopes, e um passaporte árabe com a foto do Rodrigo? Afinal o que ele fazia. Era agente secreto? Um vendedor de segredos de estado? Bom esta última não parece provável uma vez que não era militar nem cientista. Ou seria o testa de ferro, de alguém que já não precisava dele, e simplesmente queimou o "arquivo"? Ou o assassino está entre um dos seus familiares? Uma coisa me parece evidente, o autor caracterizou a Marta, para parecer que ela pode ter matado o irmão coisa em que eu não acredito..
    Dou-lhe os meus parabéns, tenho o meu único neurónio a arder e não me ocorre nada. A única coisa que sei é que ele foi assassinado e já estava morto quando caiu. isso para mim é certo, o Rodrigo era muito inteligente e um atleta, teria fletido o corpo como um gato, e partiria os braços e talvez as pernas mas não morreria.
    Vamos ver se o Duarte consegue ir até ao fim com a investigação, e se dá enfim à luz a este mistério.
    Abraço, saúde e feliz semana Santa

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    1. Bom dia, Elvira,
      Sim, consigo admitir, isso, que Marta teria conhecimento ou esperança de ter algo em nome dela, mas ainda assim, dependendo das suas “limitações” presentes, financeiras e a nível de dependência (o estar a manter-se fora ou não), também admito que possa estar em “cima da mesa” uma ocupação da casa e o colocar a mão em algo de valor antes da chegada do irmão Pedro (marido de Rosa)
      O que é que sabemos? Que o Hotel deu origem a negócios pouco claros (sorrisos) ele foi ilibado, mas vale o que vale… sabemos daquele senhor que acabou por o conduzir ao lugar que ele ocupou na cadeia de hotéis e que teve o mérito pelas promoções de Rodrigo… há quem não goste dos bancos e que seja dinheiro ainda de prémios e remunerações, o texto não é claro até onde é que vão os registos bancários, mas em qualquer dos casos tanto dinheiro sem registo dá indícios de algo pouco transparente…
      Não posso falar da última parte (sorrisos), mas e se…? (não posso contar – sorrisos)
      Muito obrigado pela presença e apoio, espero que esteja bem, deixo um abraço

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  11. Ah! Gato escondido com rabo de fora :) Com todas essas coisas que Duarte
    descobre parece que o Rodrigo não estava a pensar em suicídio. Dizem
    os analistas que normalmente os suicidários deixam carta de despedida.
    Passaportes, dinheiro, talvez levasse mesmo vida dupla, como se sugere acima.

    Duarte tem muito para descobrir. O melhor é seguir o rasto do dinheiro e
    depois se verá o resultado :)

    Abraço
    Olinda

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    Respostas
    1. (sorrisos)
      Concordo com a Olinda, a hipótese suicídio parece estar cada vez mais distante, apesar do “Não pode ser isso” acima, ter sido o único momento em que Duarte colocou a possibilidade das palavras escritas a Marta poderem ter sido uma despedida.
      Mal chegou aos outros valores e malas prontas, acredito que a visão dele mudou radicalmente e foi o momento que decidiu que tinha de saber mais, bastante mais… (sorrisos)
      Abraço, Boa Páscoa e um fim de semana tranquilo

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  12. Aqui estamos a seco e seria bom que a chuva viesse, embora com conta , peso e medida.


    Como os comentários não são aceites no post apropriado, digo-lhe neste que gostei de descobrir a sua amiga.

    Abraço e doce Páscoa.

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    1. Obrigado, São. Ela tem uma história de vida incrível para contar (não sei se são esses os seus planos).
      Abraço e boa Páscoa

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  13. Não sei quem está mais confuso, se Duarte, se eu, mas eu nunca gostei de fazer puzzles.
    Passava-se algo com e na vida de Rodrigo, mas o quê, não sei. Acredito que tivesse caído, acidentalmente.
    Bj e boa noite.

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    1. Quando se conta um conto há sempre a dificuldade em se fugir ao final esperado, a dificuldade em oferecer a quem lê o efeito surpresa. Não sei se vou conseguir presentear-vos com isso, mas para já acredito que neste ponto não devem ter certezas de muita coisa (sorrisos)
      Ele estava irritado, contrariado (nem que seja pelas palavras da senhora que limpa o prédio ao lado) e sabemos pelo Duarte que não andava tão focado como normal, não teve que ser um “empurrão”, pode ter sido um acidente que por vezes até acontecem nas situações mais simples e menos esperadas.
      Muito obrigado por ser quem é, um beijo e um fim de semana tranquilo e com sol… são oito da manhã e lá fora o dia está já bem convidativo.

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  14. Teu conto é instigante e nos leva a uma agradável leitura. Gostei muito e arrisco dizer que Duarte não estava predisposto a fugir.... fiquei curiosa, voltarei a para ler o desfecho.
    Parabéns pela maravilhosa narrativa.
    Beijinhos
    Vilma

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    1. Bom dia,

      A casa de apostas está a laborar e aceita todas as previsões (sorrisos) é uma hipótese, que todo aquele dinheiro tenha uma justificação lógica e legal e que para Rodrigo fosse pensado para um recomeçar, fosse em lagos, fosse noutro canto sem que se trate de uma fuga.
      Beijinhos, muito obrigado pela visita, espero que volte.

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  15. Bem a história cada vez está mais interessante, em que andaria metido o Rodrigo?
    Beijinhos

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