“Quando a vida não te pertence – Memórias de juventude, Parte I” (Texto 5 de 35)
A
adolescência é, ou deveria ser, um momento de experiências, com os sentimentos
todos muito potenciados ao limite e sentidos à flor da pele, num período de
crescimento a solidificar um amanhã que se quer pleno de boas lembranças.
Rodrigo
recordava-se da primeira noite após a primeira sessão de quimioterapia do pai.
Este deitado na cama, a tremer, mas ainda assim a fazer por conter o que lhe
pareceu ser dor e desconforto, mas a acentuar um “está tudo bem”. 
Nunca
se habituou ou normalizou o suficiente e nunca deixou de sofrer com aquela voz
que lhe repetia constantemente e insistentemente que cada dia passado com o pai
poderia ser o último e apesar de ter nascido no seio de uma família católica,
crente, ou talvez por esse mesmo motivo, um dia houve em que acabou por com Deus
se zangar. Justamente com aquele Deus que todos tanto veneravam e tanto acreditavam,
tão justo e tão misericordioso, mas que não o estava a deixar crescer com pai
presente. 
Que
mal é que poderia ter feito aquele homem? Sim, aquele ali deitado, em sofrimento,
jovem ainda e que mesmo assim se arrastava para ir trabalhar por forma a pagar
as contas, honesto e sobretudo, um bom pai, o seu.
Assumia
perante si mesmo aquilo que era, um chorão do pior, tantas eram as vezes que chorava,
sobretudo à noite, já deitado.
Um
dia um vizinho desafiou-o para começar a correr e entrar para a equipa de
atletismo do bairro e nos anos que se seguiram, treinos e provas preencheram as
poucas memórias que acabou por reter. 
E
à parte disso, nada, absolutamente nada. Um completo apagão.
A
diferença de dez e doze anos, talvez também não tenha ajudado a ter mais memórias
do irmão e da irmã.  Costumavam contar-lhe
que, em pequeno, ela, a mais velha, costumava cantar-lhe uma canção de embalar
por si inventada e que era a única que o conseguia adormecer. 
Um
dia, o irmão, num dos pouco momentos que esteve sem namorada, levou-o a ver um
filme ao cinema e depois disso, mais uma mão cheia de nada.
Nos
dias em que se sentia bem consigo mesmo, costumava brincar e dizer que a vida
dele era como um movel do IKEA, mas que por mais que se esforçasse a tentar
montar, faltava-lhe mais de metade das peças.
Na
escola, mesmo durante o secundário, Rodrigo nunca conseguiu fazer amigos ou ter
grande sucesso com as raparigas. Os rapazes pareciam estar todos um degrau à
sua frente, mais expeditos, vestidos com roupas de marca, penteados na moda e
toda uma experiência de vida que ele não tinha, nem muito provavelmente fazia ideia
de existir.
Um
dia, no caminho de regresso a casa, com duas colegas, uma delas, a propósito da
história do patinho feio, riu-se e teve uma tirada que ele nunca esqueceu:
-
Rodrigo, se um dia te transformares em cisne, tu não te esqueças de nós.
Ele
fez por sorrir, mas, considerou no seu interior que, uma vez patinho feio,
sempre patinho feio.
Ainda vai ser processada em tribunal pelo IKEA, lol
ResponderEliminarMais a sério: Também me recordo do meu pai e mãe com muito carinho. E, emocionado, não escrevo mais nada.
.
Cumprimentos poéticos
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Está a brincar… vou é ganhar um sofá novo para a sala… (sorrisos).
EliminarUm pouco mais a sério, eu tenho noção que este conto tem nele contida alguma escuridão inicial, mas que continua a acreditar ser necessária para a apresentação dos personagens e para o desenvolvimento da trama.
É bom termos essas memórias, nem todos têm essa sorte e mesmo o personagem Rodrigo, dentro dos desafios, acredito que teve amor, ou teria muito simplesmente escolhido ficar em casa dos tios. E, no final do dia, conta tudo o que nos traz um bom sentimento.
Abraço amigo
Rodrigo veio acumulando complexos atrás de complexos durante a infância e juventude. Isso fez dele um inadaptado e aliado à falta de fé, é uma bomba relógio que ele levou no peito para a vida adulta. Conheci um caso assim que acabou enforcado no quintal, preso num dos postes, que seguravam os arames do estendal da roupa da mãe. Tinha 27 anos.
ResponderEliminarAbraço e saúde
Eu não posso adiantar muito mais, mas Rodrigo foi criado por mim para ter aquilo que eu considero estar já um pouco fora dos limites da existência.
EliminarOu seja, não estou a dizer que ele fez ou deixou de fazer (eu não sou spoiler – sorrisos), mas quis que o personagem fosse essa “bomba-relógio” que quando o conhecer melhor consiga encontrar qualidades e valências que foram possíveis de nascer ou de ocorrer tendo por origem todos esses limites.
Todas as vidas são importantes. Eu entendo o suicídio, mas acredito que muitos dos casos, com o correto acompanhamento podem e poderiam ser salvos e ter vidas normais e felizes. É um tema muito complexo.
Abraço e obrigado.
Caro João
ResponderEliminarUm retrato muito bem delineado de um dos personagens deste
seu conto. Ficamos a conhecer Rodrigo com a sua sensibilidade
à flor da pele, procurando adaptar-se às exigências da sociedade,
desde pequeno, para não se destoar completamente. Penso que
é um esforço hercúleo tentar ser aceite, seja em que ambiente for.
Gostei muito e vou continuar a seguir a trama. :)
Abraço
Olinda
Agradeço a sua presença e comentários que muito gosto de ler.
EliminarEstou impaciente por revelar os demais personagens. Rodrigo é o personagem pesado e entendo que vamos no quinto texto e sinto em alguns dos comentários esse peso, o sombrio que deixa desconforto, mas considerei pertinente esgotar primeiro um personagem sem os quais os outros não vão ganhar a dimensão que eu espero que ganhem…
Abraço e boa semana
Olá,
ResponderEliminarConsiderações acerca da maneira de ser de Rodrigo, mas nada é por acaso.
Beijo.
Como lhe “menti” ontem ao dizer que o drama tinha terminado (sorrisos), antes de agradecer pelo seu comentário, fui ler o texto a ser publicado na próxima sexta. Pode continuar a haver uma “sombra”, mas “vamos lá sair desta depressão” …
EliminarEu tinha de vos “dar” o Rodrigo e gostaria de o conseguir tornar real (não sei se consegui). E com base no texto de sexta vou poder adiantar um pouco mais.
Já tem ideia de se o personagem principal já foi apresentado ou pensa que ainda está para surgir?
(Não tem de responder - sorrisos)
Um beijo, muito obrigado e uma semana inspirada
As vivências, também forjam o carácter do ser humano, muitas vezes enfraquecendo-o, outras dando-lhes uma força imensa, para evoluirem, para serem melhores pessoas.
ResponderEliminarAguardo, para ver o que fez a vida ao Rodrigo
Boa noite, João
Eu concordo contigo, há momentos, vivências que reforçam aqui e enfraquecem ali… e tudo o que somos no presente acaba por ser o passado refletido pelo que sofremos, pelo que não sofremos, pelas pessoas que nos rodeiam pelas pessoas que não nos rodeiam.
EliminarUm beijinho para ti
A adolescência é um periodo muito complicado da nossa vida; não estamos ainda preparados para aceitar que a ela nem sempre é bela e qualquer coisinha que aconteça é motivo para complexos que, dependendo da formação da pessoa, da sua força interior, nunca mais são superados. Sei disso, porque fui uma adolescente muito complexada, mas consegui superar e com o passar dos anos fui ganhando uma segurança tão grande que, só o que é deveras grave me abala., como dor , sofrimento e a perda dos meus queridos que já se foram, ( há 2 um e 4 outro ), os dois quase a completarem 90 anos ; fiquei desesperada, claro, mas, não revoltada com Deus, pois foram sempre muito felizes e não tiveram grande sofrimento na partida definitiva que será também a de todos nós. Mas, sabes, Amigo, não gosto de falar em Deus e não vou entrar em " debate " sobre a sua existência ou não; tantas vezes me interrogo sobre o sofrimento de crianças, de pessoas como estas fugindo da guerra e digo a mim mesma: " mas o que é que eu fiz de melhor para ter muitas mais bênçãos do que esse tanto de gente que se vê em aflições tamanhas? Nunca tive problemas graves na vida, nem eu, nem os meus familiares, porquê? Onde está Deus que não cuida das crianças doentes, com fome, assim fugindo de guerras que não entendem?. Claro, temos livre arbitreo, somos responsáveis pelas nossas escolhas, mas...as crianças? São responsaveis de quê? Prefiro dizer que " é a vida " ;ela é bela, mas para muitos é um verdadeiro terror. Bem...já escrevi demais e vou terminar com uma frase de Augusto Cury, lida num dos seus livros. " nós ficamos eternos no significado que deixamos na vida das pessoas que connosco conviveram " ( mais ou menos assim ) . Vamos lá ver se o Rodrigo morreu mesmo ou se deixou um grande significado na vida de alguém. Virei para confirmar. Obrigada e desculpa ter enveredado por um caminho nem sempre consensual; é só a minha opinião e portante vale como tal...uma simples opinião. Desejo saúde a todos aí em casa, Amigo. Um
ResponderEliminarbeijinho
Emilia
Agradeço a partilha que muito me sensibiliza ao ponto de ter de responder-lhe a si e ao pedro no primeiro momento que me foi possível.
EliminarHoje, quando estou já um bom bocado para lá da meia-idade, olho para trás e para os lados e vejo que a vida é demasiadamente complicada. Antes da pandemia, estava a gostar de acreditar que tínhamos evoluído alguma coisa (o dito ocidente pelo menos – a nível de direitos de igualdade) e que os jovens de hoje teriam a possibilidade de não enfrentar relatos como os seus (se bem que na juventude acredito que mesmo aqueles que não demonstram tiveram as suas dificuldades a ajustar-se). Hoje acredito um pouco menos.
Deus. O ser humano necessita de acreditar em algo, mais ainda quando o conhecimento está um pouco enevoado. Mas mesmo perante a clarividência. é bom haver um conforto que seja e não serei eu a negar isso a ninguém.
Eu reforço que estes textos são ficção, não são pensados em pessoas reais, são personagens que faço nascer e que faço o meu melhor para as tornar o mais reais que a minha escrita me permite.
No entanto, a minha curta experiência nestas andanças é que quem escreve mete sempre um pouco de si, do que vê, do que sente, da forma de pensar dele ou da forma como ele acha que os outros se veem.
Um beijinho para si e obrigado
"...que escreve mete sempre um pouco de si, do que vê, do que sente..." e eu acho que quem lê também se revê em algo do que é contado. . Obrigada, Amigo, pela simpatia. Um beijinho
EliminarEmilia
O meu pai está a passar um mau bocado.
ResponderEliminarVai ser operado hoje.
E tem de vencer aquela porcaria porque é fundamental lá em casa.
Um abraço
Desejo muita força e coragem, a parte psicológica conta sempre alguma coisa e deixo um sentido abraço.
EliminarUm tive o cuidado de colocar a memória de um jovem, de uma criança, sabendo que a consciência do adulto tem o acesso a todos os factos…
Olá, João! Confesso que fiquei curiosa para saber mais sobre Rodrigo! Vejo que a vida não tem sido fácil com ele, torcendo por reviravoltas nessa história!
ResponderEliminarAbraço!
Obrigado, abraço
EliminarUma excelente introspecção
ResponderEliminarGostei
Obrigado
EliminarE todos temos pelo menos um pouco de Rodrigo...
ResponderEliminarEstou a gostar, o seu conto é muito bom.
Continuação de boa semana, caro João.
Abraço.
Muito obrigado, abraço e boa semana
EliminarTraumas, complexos, a não adaptação ao meio em que foi criado, produzem estados doentios. Pode ser esse o caso. Mas ,enfim, vou acompanhando. Tem muita história ainda . Parabéns. Sabes prender a atenção do leitor.
ResponderEliminarAbraços
Muito obrigado. A vida "molda" a pessoa que há em nós. Sim, tem muita história ainda (sorrisos)
EliminarAbraço e boa semana
A adolescência, é uma fase complexa da vida do ser humano, como é natural. São as experiências, as expectativas, que nestas idades se criam no nosso imaginário, que com o decorrer dos anos, muitas vezes, se tornam em enormes frustrações, o que é perfeitamente normal, faz parte do crescimento.
ResponderEliminarParabéns, pelo excelente conto.
Deixo aqui o meu obrigado, pela visita e gentil comentário no meu cantinho.
Continuação de boa semana.
Abraço!
Mário Margaride
http://poesiaaquiesta.blogspot.com
Muito obrigado pelas palavras.
EliminarTentei criar um personagem com passado a partir do presente que lhe quis “dar” (sorrisos). A construção dos personagens oferece “n” desafios”.
Boa semana, abraço.
Olá, João
ResponderEliminarApanhei o comboio em andamento...😉 pois só tive o prazer de o conhecer no dia 14 de Fevereiro, dia de aniversário do meu blogue. Com tempo (qu´é dele...) irei lendo os capítulos anteriores, para me pôr a par de tudo.
Reportando-me apenas a este capítulo, onde me parece que se apresenta o jovem Rodrigo, devo dizer-lhe que, em meu entender, e baseada nos conhecimentos da minha formação em psicologia, a juventude é uma das fases mais problemáticas da vida duma pessoa. Tenho nove netos e alguma (???) experiência no contacto com jovens.
Todas as pessoas diferem umas das outras; contudo as características existentes em determinada idade são muito semelhantes. Nessa altura, a adolescência, todos os sentimentos estão à flor da pele, tudo se vive intensamente, com paixão. Uns "têm o rei na barriga", julgam-se "os maiores", os "senhores do mundo"; há outros extremamente tímidos, que se julgam "o patinho feio", vivem com medo de tudo e de todos. E, entre estes dois extremos há os ditos "normais" , irreverentes, atrevidotes, sempre com a resposta na ponta da língua, mas, no fundo, umas adoráveis criaturas.
É a fase da vida em que mais é necessária a atenção dos pais e educadores. São mentes em formação que necessitam de ser guiadas a fim de se tornarem adultos honestos e responsáveis.
Pedro, que se me afigura vir a ser um interveniente de peso no desenrolar da história, recorda aqui a sua juventude, cujas lembranças não reflectem muitos momentos verdadeiramente bons.
Aguardemos a continuação.
Continuação de boa semana.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS
Olá!
EliminarÉ sempre um prazer a sua visita. Quem escreve contos tem consciência do desafio que representa para quem lê seguir os muitos textos, quando as nossas vidas exigem tanto.
Relativamente ao personagem, sim, tentei dar-lhe um passado a retroagir aos momentos que considero mais fulcrais no nosso desenvolvimento enquanto pessoas, a fim de justificar as suas opções de vida (vamos lá ser se consegui – sorrisos).
Obrigado e beijinhos
A adolescência é uma fase bem complexa da vida e um acontecimento tão marcante, como a terrível doença do seu pai, certamente influenciou a forma de ser e estar do Rodrigo.
ResponderEliminarVeremos como ele seguiu em frente e se deixou de se considerar um patinho feio.
Abraços
Olá!
EliminarHá tudo isso que refere e bem e há também o facto (espero) que Rodrigo (independentemente das escolhas – que ainda não tiveram o devido acesso) não deixou de “vingar”. Rodrigo não se deixou vencer pela vida que teve em jovem e tirou o seu curso, obteve resultados.
Agora, em que forma é que tudo isso (a informação dos textos anteriores) o influenciou? (sorrisos) Não posso ainda revelar
Abraço e obrigado pela simpatia
talvez que os traumas, estejam a fazer mossa.
ResponderEliminare essa do patinho feio, doi muito, pois ninguém é feio basta ver o que existe para além da beleza fisica.
acompanhado a estória de Rodrigo a ver como se vai desenrolar.
bom fim-de-sema.
beijinho
:)
Bom dia,
EliminarTocou num bom “tema”. Independentemente dos atributos e qualidades físicas, a pessoa que somos e o interesse que podemos causar a outros depende, também, de muitos outros fatores.
Um beijinho e muito obrigado
A vida dele era como um movel do IKEA, mas que por mais que se esforçasse a tentar montar, faltava-lhe mais de metade das peças.
ResponderEliminarNão só móveis necessitam de peças completas, seres humanos e relacionamentos também.
Tenha dias abençoados com saúde e paz, João!
Abraços fraternos
Sim, concordo, a vida está sempre a obrigar a novas remodelações (sorrisos). Abraço fraterno deste lado do oceano
EliminarNão concordo em ser sempre patinho feio.
ResponderEliminarVamos la ver.
Vou continuar a ler.
Brisas doces.