“Quando a vida não te pertence – Rodrigo Lobo, memórias de infância”, (Texto 4 de 35)

 

Há memórias que parecem acompanhar-nos pela vida ao estarem como que estampadas no nosso consciente, outras nem por isso, e nem sempre conseguimos entender bem a razão dessas primeiras ficarem assim tão presentes e nítidas.

Sente a vertigem do momento, numa queda sem salvação e presta-se a deixar-se ir e a levar com ele todos os momentos que o moldaram na pessoa que foi e dos quais brotaram os seus defeitos e virtudes, até que solta o seu último sopro no exato momento do brutal embate com o solo.

Uma das lembranças mais antigas que Rodrigo mantinha bem próxima, recuava aos seus seis ou sete anos, de um dia em que pela primeira vez ficara a jogar à bola na rua, sem dar pelo cair da noite.

Ao chegar a casa, o ralhete acabou por ser tremendo, com a mãe a responsabilizá-lo por ter levado o pai doente a sair de casa à sua procura.

Os pais nunca para com ele tiveram um comportamento violento a um nível físico, mas mesmo acreditando que não o faziam de forma consciente, pareciam muito facilmente o conseguir atingir sem ter de levantar uma mão ou um cinto.

E aprofundando aquela memória em específico, Rodrigo não se lembra de ter voltado a querer ir brincar para a rua.

Das recordações de infância e não muito distante a nível temporal, havia igualmente aquela primeira vez que andou de bicicleta. Lembra-se de estar com os seus tios de Lisboa, numa região não muito distante de Guimarães e um dos miúdos vizinhos tinha-lhe emprestado a bicicleta do irmão.

Com muitos ameaços e numa bicicleta claramente maior do que a sua fraca estatura, não caíra dela uma única vez. Deste momento reteve a bela sensação de controlo e liberdade ou, o simples deslumbrar pela experiência de estar a conviver com outras crianças, algo que acabava por nunca fazer quando estava com os pais.

Mais ou menos por esta altura, com o agravamento da doença do pai, houve igualmente a mudança para a casa dos tios de Lisboa, sendo que o irmão e a irmã já se encontravam por Gaia, também em casa de família e por lá permaneceram até à idade adulta. A mãe tentara o seu melhor para o manter afastado, mas até pelo ar condescendente da sua professora da quarta classe, pela forma ternurenta como esta lhe falava cada vez que errava uma pergunta, Rodrigo entendia que cada dia passado com o pai poderia ser o último.

Quando as aulas terminaram, pediu para regressar a casa e acabou por ser inscrito na Preparatória, já em Lagos. E, quem sabe, talvez por alguma daquelas defesas que a mente humana teima em nos artilhar, Rodrigo não tem grandes memórias desses anos, nem dos colegas, nem dos professores, nem dos momentos passados em casa dos pais.

Sabia que ia às aulas, sabia que chegava a casa e fazia os trabalhos, sabia que esperava pelas horas de ter um programa de televisão para ver num dos dois únicos canais disponíveis e lembrava-se ainda de devorar os livros que os tios continuavam a enviar-lhe.

Comentários

  1. Não sou psicóloga, tão pouco quero ser, mas gosto de leituras que falam de comportamentos e das possíveis causas que os desenvolveram. Rodrigo, seria boa matéria de estudo para profissionais. Fico a aguardar novos capítulos, onde o autor, por certo, irá revelar em que adulto se tornou Rodrigo, e que tormentas lhe acompanharam a vida, agora finada.

    Este conto promete, e a mim está a agradar-me muito.
    Bom dia, João

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    1. Obrigado, menina do Norte. Rodrigo começou por ser a personagem principal de um conto que seria suposto retratar o ser humano nos seus defeitos (e algumas virtudes). Há em nós a capacidade para o melhor, mas infelizmente uma capacidade destrutiva ainda maior.
      Mas, aqui o teu amigo faltou-lhe a coragem e achou que estava um pouco enferrujado na escrita para algo assim… e mudou o registo. O primeiro texto acabou por ser completamente alterado e os personagens tiveram a chamada dança das cadeiras…
      Um beijinho para ti

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  2. Toda a infância tem os seus problemas.
    Excelente texto, como sempre.
    Boa semana, caro João.
    Abraço.

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    1. A infância é uma bênção (pelo menos para alguns de nós), as dificuldades desse tempo não nos preparam nem de longe nem de perto para os desafios da vida de adulto.
      Obrigado, Jaime. A blogosfera mima-me com a vossa amizade.
      Abraço e boa semana

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  3. Sempre fico sensibilizada com as memórias da infância, narradas assim, com a simplicidade de quem as viveu. E cito um poeta: algumas memórias são eternas e só se vêem de muito longe.
    Uma boa semana com muita saúde, meu Amigo.
    Um beijo.

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    1. Uma das muitas coisas boas de estar rodeado de poesia (neste nosso pequeno mundo) e pelas quais sou grato, é o facto de até os comentários estarem impregnados de poesia…
      Obrigado pela simpatia, um beijo e boa semana

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  4. São tantas as memórias que vamos guardando ao longo da vida. Acredito que todos gostaríamos de esquecer os maus momentos e deixar ficar registado para sempre, o que nos marcou positivamente, mas é o nosso cérebro faz a sua própria seleção.
    Excelente reflexão.
    Boa semana
    Abraços

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    1. Costumo brincar e dizer que o meu cérebro é uma enciclopédia de tudo o que não necessito saber… (sorrisos)
      Existem duas razões para ter dado a este personagem os “desafios” que dei e prende-se uma delas com o facto de achar que tamanhos desafios o ajudaram a ver com outros olhos determinadas oportunidades, neste caso académicas e por outro lado o conduziram opções que não posso adiantar de momento (mais sorrisos)
      Obrigado, abraço e boa semana

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  5. Excelente!
    Há, de facto, memórias que nos perseguem a vida inteira, e a maioria das vezes nem sabemos porquê. Por outro lado, há acontecimentos que gostaríamos de recordar em todos os seus pormenores mas... o cérebro não ajuda.
    Parabéns! Gostei imenso.

    Espero por si amanhã.

    Uma semana feliz.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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    1. Sim, há toda uma memória seletiva do que “fica” e outro tanto que gostaríamos de ter acesso e relativamente á qual “o cérebro não ajuda “. (sorrisos)
      Ainda não posso revelar o “porquê”, mas há uma razão a motivar todo este conhecimento da vida de Rodrigo (que não é o personagem principal, na minha opinião)
      Um beijinho, muito obrigado e uma boa semana

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  6. Gosto de relatos que falem de infância. Mesmo sendo pobre, adorei a minha infância e juventude
    Gostei ,muito de ler este texto
    .
    Abraço … saudações cordiais
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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    1. Olá, Ricardo.
      Um pouco na sequência do comentário acima, tenho como máxima que “o que não nos mata torna-nos mais fortes” e por vezes esses desafios são oportunidades para se ganhar valências que muito provavelmente não teríamos, nem que seja a sensibilidade para se ser mais humanos.
      Abraço e obrigado

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  7. Olá,

    Bem, um Lobo morreu ou suicidou-se, ainda não sabemos, outro está muito doente e o Rodrigo, filho de Rosa e Pedro, surge na trama, como menino bem comportado, em geral.
    Há memórias que ficam para sempre connosco, outras, não as retemos. Não sei explicar o porquê disto, mas é pura verdade. Quem é o próximo Lobo?

    Beijo e uma feliz noite.

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    1. “Um lobo morreu ou suicidou-se, ainda não sabemos” e é esse desconhecimento que me agrada (sorrisos). Não sou capaz de retirar a quem lê o prazer de tentar formular alguns juízos de prognose…
      Havia tanto para comentar do seu comentário, mas não posso (sorrisos).
      Um dos desafios de um conto acaba por ser esta fase de apresentação de personagens antes de chegar ao momento em que se sente que algo avança… e eu sei que entre o cenário e a vida difícil do morto não é fácil de lidar após um longo dia (a leitura poderia ser mais leve, eu sei e está quase… eu acredito que em breve vão conseguir desligar-se do cenário)
      Um beijo e uma noite inspirada

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  8. Li o episódio na segunda feira, mas nesse dia não sei porquê não consegui comentar, nem o seu nem mais alguns blogues. Parece que não aconteceu comigo recebi e-mails de leitores que também não conseguiram comentar o meu. Podia ter experimentado ontem mas resolvi deixar para hoje e comentar os dois.
    Parece que a infância do Rodrigo não terá sido muito boa. E todos sabemos como a infância marca a vida adulta. Vamos ver se sabemos mais um pouco sobre este personagem.
    Abraço e saúde

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    1. Sim, o blogger tem andado estranho…
      Um dos muitos desafios de quem escreve contos acaba por ser a construção dos personagens e a tentativa de lhes darmos vida.
      Muito obrigado, abraço e boa semana

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  9. memórias da infância que ficam para todo o sempre.
    acompnhando este Rodrigo.

    :)

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  10. Boa noite de domingo, João Santana!
    As primeiras ficarem assim tão presentes e nítidas.

    Lembranças inesquecíveis sejam boas ou não deixam marcas e os comportamentos no futuro as refletem.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Abraços fraternos de paz e bem

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    1. Somos, entre muitas outras coisas, fruto das nossas experiências e sentires anteriores.
      Boa tarde e bom início de semana. Abraço fraterno deste lado do oceano

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  11. Toca-me sempre as memórias da infância.
    Boas ou menos boas fazem parte do nosso caminho.
    Ao que parece o Rodrigo ao terá tido a melhor infância.
    Vamos lá ver como será a caminhada do Rodrigo.
    Brisas doces *

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