“Quando a vida não te pertence – Marta Lobo” (Texto 11 de 35)
Dois dias antes do infortúnio e do que quer que tenha provocado a queda do telhado, Marta Lobo, a irmã afastada e problemática, com vícios que apenas consegue deixar por pequenos períodos, voltara uma vez mais para pedir dinheiro no intuito de refazer a sua vida e desta vez, como já noutras anteriores, sem casa, sem trabalho e sem qualquer outra alma a quem recorrer.
-
Obrigado por nada, nunca posso contar contigo, era só mais esta vez. Estou
sóbria. Consegues ver que estou.
Gritou
em tons de fúria.
A
Rodrigo, esta realidade surgia-lhe como que em uníssono, com todos os muitos outros
momentos anteriores em que tinha dado o que tinha e o que não tinha para oferecer
uma segunda, uma terceira e uma quarta nova vida à irmã.
Não
sabia se eram as constantes ameaças de pôr fim à sua própria vida, se o dizer
que se ia prostituir ou que a próxima seria uma overdose, mas Rodrigo já não
conseguia ter lugar na sua vida para ela, não por não querer, mas por já não
conseguir.
-
Queres matar-te? Mata-te! Tanto me faz. Olha á tua volta e diz-me o que queres
que venda mais? Olha bem à tua volta e vê até onde fui por ti. Acompanhei-te às
reuniões. Vendi o que havia para vender. Fui contigo aos médicos quando ainda
querias ir aos médicos. Queres pão? Arroz? Eu dou-te, semanalmente e à medida
do que considere razoável.
Gritou
em desespero.
-
Tu tens a casa.
Responde-lhe
ela, desta feita quase em murmúrio.
Ele
não teve presente o número de vezes que levantou e baixou os braços, que
respirou fundo e que levou as mãos à cabeça.
-
Saí já da minha casa. Grita o que quiseres, mas lá fora, não te aguento mais.
Lembras-te do número de vezes que me disseste que não tinhas nenhum irmão
chamado Rodrigo? Pois não, já não tens.
Ela
cuspiu-lhe, virou-lhe as costas, saiu porta fora sem olhar para trás.
Entretanto,
três dias se passaram depois deste último confronto e após a
libertação do corpo após autópsia, já próximo do fim da noite, Marta entra no
pequeno espaço onde o velório estava a ser realizado.
Marta
ignora a presença do irmão e da cunhada, aproxima-se do corpo e com um ar dócil
e tranquilo solta para o ar:
-
O meu irmão era incansável, sempre disposto a ajudar, sempre com um sorriso. Tantas
memórias…
Num
diálogo para quem quer que a quisesse ouvir, continuou com um sorriso apagado,
mas bondoso.
-
Mesmo quando me zanguei com os meus pais e sai de casa, nunca me rejeitou uma
chamada, nunca disse um “não, não ajudo”. Era o meu irmãozinho, o meu menino.
Deu
mais alguns passos, aproximou-se, destapou o véu que cobria a cara do irmão e
beijou-o na testa.
-
Foi o único.
Voltou
as costas por forma a retirar o irmão e cunhada do seu campo de visão e levou a
mão ao peito, constrangida.
-
Dei-lhe o seu primeiro livro. Era uma aventura dos cincos e ele devorou-o num
único dia.
Sorriu.
-
Sempre que o meu pai gritava comigo por chegar tarde a casa e dizia que me ia
por as malas á porta ele metia-se no meio e agarrava-se a mim com todas as suas
forças. O meu menino lindo.
Todos os mortos são santos...
ResponderEliminarQuando inicialmente pensei neste conto como num conto “sério”, tinha em mente uma caricatura da hipocrisia humana e quando fugi para um pouco mais perto da minha zona de conforto, Rodrigo virou cenário. Da primeira versão ficaram “n” questões que eu queria retratar e essa é uma delas.
EliminarAbraço, obrigado e bom fim de semana
Bom, finalmente a irmã, malvada, e drogada apareceu. E com uma representação digna do palco de qualquer teatro.
ResponderEliminarVolto logo. A Margarida acordou e está a chamar peo mim.
Abraço
(sorrisos) Respondo no fim
EliminarPara qualquer um, ter como carga o que Rodrigo teve com esta irmã, é dose, mas não creio que tenha sido a causa da sua morte, ou sim, quem sabe, este contista é mestre em mistério e a dar voltas às vidas dos elementos.
ResponderEliminarAguardo já o próximo capítulo :)
Bom dia. João
Olá!
EliminarTanta má-língua menina Non (sorrisos)
Posso acrescentar que quando cheguei a esta fase (e houve avanços e recuos como mencionei inúmeras vezes) os personagens tinham sido apresentados e considero que estamos a entrar agora no início do desenvolvimento do conto e a bolsa de apostas acaba por ser:
- Suicídio?
- Acidente?
- Outra coisa? E a Teresa até já avançou com a teoria de ter sido empurrado…
E isso poderia ter-me chegado, mas não chegou.
Uns personagens mais do que outros estão a “crescer” e um será o protagonista, mas outros vão ganhar alguma dimensão e haverá histórias e acontecimentos dentro do próprio conto que espero que façam sentido)
Foi o conto que mais me divertiu até hoje (curiosamente) e terá sido aquele em que mais me envolvi e o seu desenvolvimento foi “intenso” e intensivo até, prometo desenvolver adiante.
E por todos esses motivos, espero que gostem.
Um beijinho para ti.
Continuo a gostar.
ResponderEliminarHistória e narrativa muito boas.
Continuação de boa semana, caro João.
Abraço.
Muito obrigado pela simpatia, abraço e bom fim de semana
EliminarA queda do telhado? Interessante e vivo o diálogo entre Rodrigo e a irmã, que reconheceu tudo aquilo que o irmão fez por ela.
ResponderEliminarPela sua narrativa, houve acérrimas discussões entre eles, aquando da vida errada e errante dela, mas ela/Marta sempre gostou de Rodrigo, acho eu.
Dias felizes.
A irmã de Rodrigo, acabou por surgir na história para lhe dar alguma diversidade e permitir tocar nalguns temas, não estava entre os personagens originais.
EliminarEm todo o caso, quando dei a “volta ao texto” e mudei o caminho da ação, senti necessidade de ter personagens suficientes para vos desafiar a entender quem é o principal e algo mais que não posso para já revelar – sorrisos).
Por mais que possa aparecer, em momento algum estou a “crucificar” a irmã, que espero que consiga endireitar a sua vida (algo nem sempre fácil).
Eu considero isso mesmo, que ela gostou do irmão apesar de muito provavelmente estar a sentir algum “alivio” financeiro a aproximar-se.
Um beijo, obrigado e bom fim de semana
Talvez a irmã tenha contribuido para a sua morte que pode ter sido suicidio ou acidente. Tanto lhe deu que pode ter tido dividas e a solução para resolver o problema foi essa. Como já disse conheci um caso assim; Mas...só esperando para ver o que acontece e é isso que voi fazer com muita paciência, pois a curiosidade é muita. Joao, boa noite, saúde para ti e para os teus e cá estarei para o próximo capitulo. Um beijinho
ResponderEliminarEmilia
(sorrisos)
EliminarMuito obrigado. Não vou revelar se foi o caminho seguido, mas posso dizer que no meu pensamento inicial quando comecei a desenhar o conto, a hipótese suicídio não estava presente, no texto original tinha sido um acidente e no fundo a história seria de certa forma uma critica minha à sociedade em geral, abarcando alguns temas.
Com a mudança do que queria para o conto, era para mim importante deixar a quem lê a dúvida:
- Suicídio;
- Acidente;
- 3.ª Opção…
E nessa base que o conto se desenvolve, as razões que o poderiam ter levado ao suicídio, as razões para um eventual acidente (talvez falte qualquer coisa, mas estão basicamente dadas) e as razões para a 3.ª opção que ainda estão em desenvolvimento e penso que esta é a minha oferta para quem me oferece o seu tempo.
Não estou a dizer o caminho que segui até porque posso garantir que lutei com a escolha desse caminho e muito (sorrisos)
Obrigado, um beijinho e bom fim de semana
Reli o episódio e não tenho muito mais a dizer. Parece que afinal a falta de mobílias e outras comodidades em casa do Rodrigo, não se devia ao facto dele estar preparado para fugir a qualquer momento, mas às ajudas que dava à irmã. Parece. E às vezes o que parece é, mas... neste conto a dose de mistério é grande.
ResponderEliminarAbraço e saúde
(muitos sorrisos)
EliminarA atenção da Elvira será a minha desgraça (brincadeira)
Ora, o que é que eu posso acrescentar sem referir nada que não deva (mas que quero)
Primeiro, eu sei que nesta fase há uma irmã demónio à solta, mas eu não a considero má pessoa, apenas considero que é alguém que necessita de ajuda e de se ajudar a si mesma também, porque tudo aquilo que ela vive controla a pessoa que é e não a deixa sair do fundo do poço.
Rodrigo tem qualidades, mas estará a dizer tudo?
Mesmo com o escândalo e o decorrer do processo em tribunal (do qual saiu recentemente ilibado de qualquer crime e em relação ao qual esteve desde o primeiro momento a auxiliar as autoridades – penso que já foi tudo referido e que não estou a dizer algo que não deva – sorrisos) ele ficou pelo algarve, em funções “diminuídas” e pelo ordenado mínimo e alguém com o CV dele e o percurso académico, com maior ou menos esforço poderia arranjar algo melhor… ou não, mas ele não pareceu tentar. Terá sido pela família?
E o tal senhor que se ofereceu para fazer dele um homem rico?
Abraço, muito obrigado e um fim de semana inspirado
A irmã do Rodrigo, embora tenha enveredado por caminhos sinuosos que acabaram por prejudicar também o irmão, pareceu sentir bastante o falecimento deste.
ResponderEliminarBeijinhos
Marta não deverá ser o demónio, apenas alguém perdido com dificuldade a voltar a encontrar o caminho.
EliminarPara mim há nela, num momento como este uma multiplicidade de sentires, entre eles algum saudosismo do tempo em que tinha algum controlo sobre a sua própria vida, a dor pela perda do irmão e algum eventual alívio financeiro, mesmo se inconsciente ou pouco consciente, mas nunca deliberado.
Eu sei que estou em falta com quem me honra com o seu tempo, vou começar pela resposta aos comentários e depois ir passando às visitas.
O meu muito obrigado, um beijinho e um bom início de semana
ResponderEliminarOlá, Joao
Por vezes acontece haver pessoas com problemas desses nas famílias. Problemas que parecem insolúveis e que fazem felizes quem se encontra nesse vício e a própria família que não sabe para que lado se há-de virar para ajudar.
Não sei se a Marta estaria a ser totalmente sincera no seu monólogo...pode ser que sim, mas talvez a dependência tenda a suplantar o amor pelo irmão.
Contudo, apostemos na sua recuperação...
A ver vamos, não é verdade?
Abraço
Olinda
Corrigindo
EliminarOnde se lê: "fazem felizes"
Deve ter-se: "fazem infelizes"
Obrigada
A Olinda acertou no ponto sensível e vai no sentido de parte da minha resposta ao comentário acima.
EliminarMarta não está ao leme do seu próprio navio, mesmo se aqui e ali acredite que está “limpa” e livre do vício numa luta muito provavelmente tão eterna quanto a sua longevidade.
Parte da “carga” desta fase inicial do conto foi construída pela minha vontade inicial de escrever um conto diferente, mais sério do que os que habitualmente escrevo e ver retratados alguns temas que considero importante ver discutidos e que todos sabemos existir e que outros acabam por se ver confrontados de uma forma ou de outra.
Ao ser o meu primeiro conto após este meu regresso, acabei por achar que não podia ir por um caminho tão sério e soltei a imaginação possível e pensei que o desafio passaria a ser retratar todos esses temas, mas com um enredo que lhe iria retirar “metade do seu peso”.
Um abraço de gratidão pela presença, bom início de semana.
"...nunca me rejeitou uma chamada, nunca disse um “não, não ajudo”. Era o meu irmãozinho, o meu menino."
ResponderEliminarGosto muito de ver Delicadezas nos textos que leio seja em prosa ou em verso.
Capto gestos humanos mim mundo desumano por demais.
Tenha dias abençoados, João!
Abraços fraternos
Infelizmente sinto-me obrigado a concordar, há uma desumanização deste nosso mundo, cada vez mais artificial.
EliminarAbraço fraterno