“Quando a vida não te pertence – O apartamento, Parte I” (Texto 17 de 35)

Já dentro do carro, Duarte arranca em direção à esquadra, num ritmo claramente superior ao permitido. Lá chegado, lembra-se da desculpa dada por Marta e ao colega que encontra à entrada diz-lhe ter-se esquecido da carteira. Entra no gabinete que reparte com mais dois colegas e aproveitou não estar ninguém para ligar o computador e aceder ao Auto de Notícia do agente que foi chamado a tratar da ocorrência.
“Não, não menciona testemunhas para além da pessoa que passava naquele momento pela rua e que acabou por ser surpreendido por aquela queda aparatosa, brutal e sangrenta”.  O VMER foi chamado ao local (Viatura Médica de Emergência e Reanimação) e verificou do óbito e o caso foi comunicado ao Procurador e remetido para o Instituto de Medicina Legal.
Duarte lembra-se de ligar a uma antiga namorada com quem combinou um jantar em data a não acontecer e foi assim que colocou as mãos no relatório do médico legista, sem nada de relevante a bem da verdade, uma autópsia perfeitamente regular, na sequência até do que já estava à espera de encontrar, num processo que foi desde o primeiro momento tratado como um banalíssimo acidente. “o indivíduo encontrava-se a limpar o algeroz, quando terá eventualmente escorregado ou perdido o equilíbrio, com resultado morte   motivada pela queda de dois andares”, fim de citação. “Tanto relatório para pouco mais que a aparência de um simples traumatismo crânio”.  
“Raios, isto é um nó cego, não há indícios, o que é que eu estou a fazer?”
Rosa, a cunhada, omitiu ter estado com Rodrigo poucos instantes antes do ocorrido, mas à hora exata em que se deu o acidente, Rosa cruzou-se com Duarte na mercearia, aliás, ela já lá estava quando ele entrou na loja. Sorridente e insinuante, como sempre, mas já lá estava, chegou primeiro.
“Ora, se era ela que estava com Rodrigo no telhado, muito provavelmente a outra mulher seria a irmã e faz todo o sentido que com elas, Pedro, marido de Rosa e irmão de Rodrigo e de Marta.”
“Será?” Questionou no silêncio da sua mente.
Sai do gabinete, passa pelo colega que ainda se encontra à entrada, faz por sorrir e acenar com a carteira por forma a justificar a sua entrada na esquadra num dia de folga.
“Não, o Pedro não mataria o irmão, questões à parte, não o faria. Não, não há um motivo, é claro que não há motivo, haverá? Inspira profundamente, talvez numa tentativa inconsciente de procurar reduzir a velocidade dos seus próprios pensamentos. “Até poderia fazer sentido a discussão, as famílias discutem e mesmo o acidente em si, ocasionado por qualquer desatenção momentânea no calor do momento, mas não a ocultação do sucedido, isso nunca”.
Tão perdido em pensamentos, que quase bateu com o carro ao sair do estacionamento, não tivesse sido a travagem brusca de pé a fundo pelo outro condutor.
Ele gesticula um pedido de desculpas e arranca com o carro sem conseguir desliga-se.
“Vou confrontá-los. Devo confrontá-los? Não há indícios, não há motivo e ainda levo com um processo disciplinar à conta deste sentimento de que algo aqui não está a bater certo, quando tudo à minha volta me garante precisamente o contrário. “

Comentários

  1. Cada capítulo aumenta o interesse do policial.

    Matar um irmão é um acontecimento quase banal desde Caim e Abel ☠️

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    1. (sorrisos)
      Eu arriscaria a dizer que quase tudo já foi inventado (e penso até que estou muito provavelmente a repetir o que já disse numa resposta anterior, mas ainda assim 😊)
      Mais do que uma vez (e estou a pensar num autor em particular, dois) recordo-me de ao estar a ler um dos seus livros pensar que o autor, de livro para livro, basicamente altera os nomes dos personagens (não é bem assim, mas penso que entendes o pensamento). Talvez por esse mesmo motivo eu fico entusiasmado quando um livro me oferece uma fórmula diferente de contar a história ou de apresentar os próprios personagens.
      E ultimamente, mais do que o conteúdo, o que mais me tem entusiasmado ao ler um livro é a qualidade da escrita e acabo (curiosamente) a pensar que gostaria de ter a qualidade de escrita (não desse ou desses autores) mas da minha amiga Ana Tapadas (alguém que muito admiro).
      Um beijo para ti

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  2. "Tanto relatório para pouco mais que a aparência de um simples traumatismo crânio”.
    Fiquei com os olhos em bico. uma queda de dois andares que provoca morte imediata e o relatório médico diz isso? Nem o pescoço partido, uma hemorragia interna, fraturas de costelas ou membros? Que diabo de médico fez a autópsia? Será que ele pelo menos olhou para o Rodrigo? Ou alguém lhe pagou para ele escrever isso?
    Sabe de uma coisa João? Há anos, o filho mais velho do meu cunhado , tinha 17 anos estava na Escola e numa hora em que não tinha aulas, foi com colegas para um prédio de quatro andares em construção. Na altura na brincadeira alguém lhe deu um encontrão ele desequilibrou-se e caiu pelo buraco da caixa do elevador. Chamaram a ambulância e foi levado para o Hospital de Lagos. Quando lá chegou queriam enviá-lo para Faro mas um cirurgião que na altura ia entrar ao serviço viu-o dentro da ambulância e mandou-o imediatamente para o bloco operatório dizendo que ele estava com uma hemorragia interna, se fosse para Faro morria no caminho. Bem sei que um quarto andar é o dobro da altura, mas o meu sobrinho rompeu o baço, fraturou um braço e três costelas, e até não morreu, porque o instinto de sobrevivência o levou a esticar os braços e tentar amenizar a queda batendo nas paredes da caixa. Faleceu há dois anos com 54 anos. Bom isto não tem nada a ver com o seu conto, mas não me parece possível uma morte imediata apenas com um simples traumatismo do crânio. Depois o Rodrigo era um homem que se cuidava, por isso corria habitualmente se se desequilibrasse o seu instinto levá-lo-ia a utilizar os braços para amortizar a queda e proteger a cabeça. A não ser que já tivesse perdido os sentidos quando "caiu".
    Continua o mistério e a minha cabeça já deita fumo de tanto tentar descobri-lo.
    Um conto destes devia vir acompanhado de um extintor :)))
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. (muitos sorrisos)
      Assumo a culpa de não ter conseguido mostrar a imagem que tinha na minha mente. Esse primeiro pensamento é um pensamento, com total ausência de formalidade e que não sei a partir de que momento retirei a palavra “amigo”.
      Lá estou eu a divagar novamente, passo a explicar (sorrisos):
      "Amigo, tanto relatório para pouco mais que a aparência de um simples traumatismo crânio”. No lugar de "Tanto relatório para pouco mais que a aparência de um simples traumatismo crânio”.
      É provável que entre as revisões tenha perdido o “amigo” por qualquer motivo que agora não consigo precisar. Mas a ideia aqui é Duarte estar a falar para Rodrigo, o amigo falecido, a desabafar o facto de não conseguir encontrar nada de “útil”, nada que lhe aponte um caminho.

      Adiantando, por vezes não é a altura da queda que causa o maior dano/causa morte é a forma/posição com que o embate com o solo acontece. Eu diria que se ficou vivo e a andar esse miúdo teve muito sorte e ainda bem.
      Neste caso, todos sabemos quem é o assassino, e Rodrigo teria falecido mesmo se estivesse apenas a cair do degrau… eu matei o Rodrigo e escolhi o telhado… (em modo spoiler – brincadeira) 😊
      Não posso comentar muito mais (sorrisos) mas muito agradeço pela companhia nesta minha maratona.
      Um abraço e bom início de semana

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  3. Duarte tem razão, existem segredos nesta morte, mesmo que tenha sido suicídio, poderá ter sido provocado por terceiros. Vou andar atrás do Duarte, para ver onde o leva a desconfiança.

    Boa tarde, João e bom fim de semana

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    1. Sim, vai lá atrás do Duarte, mas se ele te colocar na lista de suspeitos não te queixes… (sorrisos)
      E a título de curiosidade, no meu primeiro blog, em 2008, os meus poucos contos tinham uns dois ou três parágrafos, não pelo meu brilhantismo (sorrisos) mas pela incapacidade de desenvolver muito mais do que isso (quando este conto acabar vou voltar a publicar um ou dois pela curiosidade.
      Hoje, do balanço que tenho feito, com este conto em particular, permitiu-me observar que uma das dificuldades acaba por ser o contar um conto numa página (e continuar a gostar de escrever). Permitiu.me também aperceber-me de “n” situações em que gostaria de conseguir melhorar.
      Um beijinho para ti

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  4. Um investigador nato esse Duarte. A cabeça vai fervilhar até encontrar o motivo da morte do Rodrigo. E euzinha aqui, claro , acompanho passo a passo essa investigação. Parabéns João, estou adorando esse mistério, ou melhor, história.
    Abraços , amigo.

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    1. Duarte já está na linha da frente para personagem principal (parece-me) mas, espero que ainda possa haver uma ou outra surpresa em cima da mesa (sorrisos)

      Muito obrigado pela presença e pela simpatia, abraço e bom início de semana

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  5. A eventualidade de um crime é sempre uma ocorrência grave.
    Abraço amigo.
    Juvenal Nunes

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    1. Muito obrigado, deixo um abraço e o desejo que tenha uma semana tranquila e inspirada.

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  6. Acompanhando e gostando de ler
    .
    Um Sábado feliz … Cumprimentos poéticos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  7. O mistério será desvendado ou tornar-se-á em caso insolúvel?

    Abraço
    SOL da Esteva

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    1. Ora aí está uma boa questão (sorrisos)

      Aceito apostas. Abraço e bom início de semana

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  8. Estive pesquisando e vendo imagens de algerozes, porque não fazia a mínima ideia de como eram e o que eram.
    De facto, Rodrigo pode ter caído para dentro do algeroz, por descuido, ou ter sido empurrado, ou ter-se suicidado daquela forma. Que tragédia!
    Cada vez mais mistério. Duarte também está bastante confuso e desnorteado.
    Beijo e bom weekend.

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    1. Normalmente o acesso até é particularmente difícil e apenas pode ser visitado sem chuva para não arriscar quebra de telhas, mas para confundir um pouco mais, tornei o acesso ao telhado e ao algeroz fácil e seguro… (sorrisos) Também, porque, se fosse difícil, normalmente faria mais sentido contratar um profissional, isso ou teria de transformar o personagem em alguém que gosta deste tipo de trabalhos (também os há para felicidade das famílias)
      Está provado que Duarte não gosta de puzzles a faltar peças… 😊
      Um beijo para si e uma semana inspirada

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  9. João eu não estou em casa 🏡 e sem o meu tablete actual não entro na caixa dos comentários. Logo que regresse a casa, mando imediatamente resposta.

    Até segunda-feira 💙

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  10. Olá, João

    A coisa complica-se. Duarte tem razão em estar com tantas dúvidas. Se o relatório aponta a causa da morte como sendo um traumatismo craniano e, realmente, se não havia mais indícios o que poderia fazer o médico legista?

    Mas tendo chegado ao seu conhecimento a presença de mais pessoas, e não eram poucas, e se
    há omissão por parte delas, claro que tem de se questionar a si e aos outros. Trabalho de polícia...

    Como vai descalçar esta bota, não sei :)
    A ver vamos...
    Abraço
    Olinda

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    1. Bom dia, Olinda,
      A omissão, neste cenário tem necessariamente de dar origem a algo que se quer manter fora do conhecimento público, resta saber se justifica ou não o que aconteceu… (sorrisos)
      Uma Páscoa Feliz e obrigado pela presença

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  11. Talvez seja melhor mesmo o Duarte investigar um pouco mais, pois a história está cada vez mais emaranhada.
    Comecei agora a leitura desta semana e vou continuar para os capítulos seguintes.
    Abraços

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