“Quando a vida não te pertence – Marta Rolo” (Texto 15 de 35)

O entardecer tinha atraído a chuva acompanhada de um ar gélido e cortante vindo de norte, agravado por um vento de força, a prometer uma noite cinzenta, escura e tempestuosa.

Duarte acabou de chegar a casa vindo do crematório. As suas roupas estavam molhadas pela chuva e sentia-se desconfortável, a acusar algum cansaço pela emoção dos últimos dias, até mesmo mais angustiado e irado com a vida, do que cansado.

Larga as chaves num pequeno cesto à entrada e escolhe um pijama que deixa em cima da cama antes de entrar para o banho, quando tocam à campainha. Vai abrir e depara-se com Marta, a irmã mais velha de Rodrigo, de cabelo a escorrer e com as roupas encharcadas pela chuva.

Ela tremia, de frio ou pelos nervos e isso motivava um tom de voz ainda mais perturbado.

- Desculpe, eu sei que era amigo do meu irmão. Pensei que talvez tivesse uma chave suplente da casa dele. No outro dia, estava atrasada e acabei por sair e lá deixar a minha carteira, estou sem dinheiro, não sei como é que vou conseguir voltar.

Duarte encolheu os ombros e disse não ter a chave. Mentiu.

- Talvez possa falar com o seu outro irmão.

Ela abanou a cabeça, disse não saber onde este morava. Ele ofereceu-se para a levar lá e ela admitiu que não se falam.

- Eles não gostam de ninguém.

Desabafa.

Duarte lamentou sem saber o que dizer, abriu a carteira e retirou duas notas de vinte euros.

- É tudo o que tenho, talvez ajude.

Ela aceita, agradece, pede desculpa, vira-se na direção das escadas e ele fecha a porta.

Não teve sequer tempo de chegar á casa de banho quando bateram novamente à porta.

- Desculpa, Duarte, não sei como dizer isto, mas não tenho onde dormir e necessitava de cá ficar até resolver a questão da casa.

A voz tremia-lhe, estava ainda mais pálida, talvez da fraca iluminação das escadas.

Duarte não queria acreditar no fim de dia que estava a ter.

- Desculpe, a casa é pequena e a minha namorada está a chegar e traz a irmã.

Mentiu novamente.

- Posso levá-la até ao seu outro irmão? Aceite, eu levo-a até ao Pedro, normalmente as diferenças familiares resolvem-se em momentos como este.

Ela deu um pequeno salto de indecisão e frustração e foi-se embora sem mais, deixando-o ainda alguns minutos de porta entreaberta, com o sentimento de culpa por não estar a ajudar esta mulher, claramente perturbada e a necessitar de algum tipo de ajuda.

Comentários

  1. Caramba! Este capitulo é de uma força brutal. Está bem que é Marta, a problemática, mas é preciso muito sangue frio para se conseguir distanciar desta forma. Que sabe Duarte que nós ainda não sabemos?

    Boa noite, João


    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, menina do Norte, é um texto de viragem que separa a apresentação dos personagens e dá origem ao enredo propriamente dito.
      Já agendei o texto de amanhã e confirma-se… amanhã a história avança… se avança… (sorrisos)
      Um beijinho para ti

      Eliminar
  2. Um capítulo muito bem urdido, que nos agarra e nos deixa em suspenso até ao próximo....
    Beijos.

    ResponderEliminar
  3. As relações humanas podem realmente ser muito complicadas.

    Abraço, tudo de bom

    ResponderEliminar
  4. Bom o Rodrigo foi cremado. Então mesmo que haja alguma coisa estranha no relatório médico, não há hipótese de pedir uma exumação de cadáver. Ótimo para quem o matou, se é que ele foi assassinado. Por outro lado se o médico tivesse qualquer dúvida, no relatório, o funeral não teria sido autorizado, muito menos uma cremação. Logo, supõe-se que terá sido um suicídio, se voluntário ou não, é outra história.
    Depois temos a Marta. Esta personagem é a ideal para ser acusada de tudo e mais alguma coisa, mesmo que não passe de uma pobre coitada que não tem onde cair morta , embora a minha primeira impressão fosse a de que havia muito de atriz na sua atitude.
    Enfim adensa-se o mistério neste momento, qualquer dos que já apareceram por uma ou outra razão podia ter provocado um assassinato com cara de suicídio. Até o casal alemão do andar de cima que parece estar na história só para enfeite, mas que pode estar ligado ao tal senhor que há anos o procurara à saída da Universidade.
    Sabe de uma coisa? Gostava de ter a sua capacidade de escrever.
    Abraço e saúde

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Assumo que teremos de ver então o relatório do médico… Já nem eu sei o que lá diz… mas se hoje conseguir passar ao agendamento dos próximos textos vou ficar a saber (Sorrisos)
      Agora, está a escapar-lhe a hipótese acidente, um descuido, estava irritado e virou-se para o lado errado, ou tropeçou em alguma coisa ou tinha o atacador desatado… porque não? (mais sorrisos)
      Eu para a Elvira sou um livro aberto (sempre a sorrir) não há muito que consiga esconder e Marta foi construída exatamente por ser um alvo fácil, o que não quer dizer que não seja tudo isso que acabou e dizer, frágil e alvo fácil por um lado e atriz por outro.
      Sabe uma coisa?
      Eu admiro e respeito tanto a Elvira que as suas palavras me enchem a alma, mesmo se considero que a Elvira tem essa mesma capacidade ou até mais ainda, por vários motivos. Escreve bem, trabalha os textos (e os temas que quer incluir) como poucos, apenas é uma romântica incurável e acredita num mundo melhor e tudo isso são qualidades a louvar.
      Está a ver, agora no lugar de um abraço leva um beijinho de gratidão.
      Muita saúde e uma semana inspirada

      Eliminar
  5. Um capítulo super interessante!!!
    Peço desculpa em ter tardado a chegar até aqui... mas de há uns tempos para cá... as minhas rotinas tornaram-se mais desafiantes e ocupadas, e o meu tempo para a Net, tem-se ressentido...
    Adorei a estrutura do enredo, que me prendeu logo à história... que vou desejar conhecer e acompanhar... conto vir esta semana, com tempo para ficar a par desde o início.
    Ainda não conhecia este cantinho literário! Parabéns pelo mesmo!
    Um grande abraço! Votos de continuação de uma excelente e inspirada semana!
    Ana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá!
      Na blogosfera nunca chegamos tarde… chegamos apenas com um pouco mais por ler ou por ver (sorrisos)
      Entendo bem o fator tempo… Isto é uma luta.
      Agradeço a simpatia e espero que volte.
      Um grande abraço e uma semana inspirada

      Eliminar
  6. Um texto muito bem escrito. Gostei do diálogo entre Duarte e Marta. Esta "menina" tem uma conversa que convence qualquer um, qualquer um, não, porque o Duarte não foi na conversa dela (ainda há homens de "ferro" - rs).
    O conto está a bom ritmo e talvez já não estejamos longe de saber de que morreu Rodrigo. Aguardemos!
    Beijo e bons sonhos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá!
      Marta é qualquer coisa de especial…
      Penso que o texto de hoje já dá uma ajuda… ou não (sorrisos)
      O Duarte é de ferro ou parece de ferro? Há quem defenda que todas as pessoas têm um preço… (mais sorrisos)
      Muito obrigado, um beijo e uma semana plena de inspiração

      Eliminar
  7. Inteligente e prudente o Duarte. A irmã do Rodrigo não lhe inspira confiança. Qualquer de nós, também "sentimos" quando se pode confiar em alguém ou não. Raciocínio rápido, pressentiu que se a tal mulher dormisse em seu apto, poderia ocorrer alguma coisa desagradável . Essa história está ficando super interessante. Parabéns, você escreve muito bem. Voltarei. Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado pela simpatia.
      Não é fácil receber uma pessoa estranha em nossa casa (acho) para mais quando de antemão se sabe o historial difícil, por outro lado dar acesso a uma casa que ainda não lhe pertence agravada por motivos que nos possam estar a escapar nesta fase… ou não (sorrisos)
      Beijinhos e boa semana

      Eliminar
  8. normalmente as diferenças familiares resolvem-se em momentos como este.

    Olá, João!
    Toda família tem um pouco do que descreveu na frase acima que recortei... Menos mal.
    Tenha dias abençoados!
    Abraços fraternos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim as famílias tendem a ter sempre uma ou outra caraterística comum (sorrisos)
      Muito obrigado, abraços fraternos e uma semana inspirada

      Eliminar
  9. Muito bom, muito bom mesmo este capítulo, caro João.
    Não li os comentários nem as suas respostas, para não
    influenciar o meu comentário. :)
    Colocou o personagem Duarte perante um dilema e um
    caso que na vida real acontece muito. O que fazer numa
    situação dessas? Deixar entrar a pessoa que já vem com
    maus antecedentes mas com numa visível aflição ou fazer
    o coração duro e negar a entrada?
    Conhecemos a opção do Duarte. Veremos depois como o autor vai
    proceder quanto a esta situação.
    Aguardo :)
    Abraço
    Olinda

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. (sorrisos)
      Escrever um conto tão longo é um exercício de escrita relativamente exigente para quem não é sequer um projeto de escritor. Da criação e personagens, ao cenário por onde os personagens se movem, às incongruências (aquelas que consigo apanhar), mas foi “divertido” e ainda tenho os últimos dois textos por “alinhavar”.
      E tudo isto para dizer que é muito simpático sentir a presença das pessoas habituais (que sabem quem são) e que escrevem muito bem e que têm uma “base de suporte” literária e cultural invejável e que mesmo assim me presenteiam mais do que com a sua presença, com a sua leitura, a acompanharem e a recordarem-se da história e isso deixa-me muito honrado.
      Abraço e bom fim de semana,

      Eliminar
  10. Bem, coitado do Duarte, teve um dia bem difícil que se complicou ainda mais com a visita inesperada da Marta. Ela parece realmente ser uma pessoa complicada e com graves problemas, mas sem grande vontade de ser ajudada para os resolver, como já lemos anteriormente quando o Rodrigo queria ajudá-la e ela apenas queria dinheiro.
    Abraços

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Já estou a sorrir.. um pouco na sequência da minha resposta ao comentário da Olinda, “estragam-me com mimos” ao ver que realmente há quem acompanhe estas maratonas e que no texto 16 ainda se recorda do que aconteceu nos anteriores… (sorrisos)
      Fico contente e agradeço. Abraço e bom fim de semana

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Desafio 1 – “O Retorno”:

“Natureza, disse ele”

Regresso a casa