“Quando a vida não te pertence – Kate Miller (Texto 35 de 35)

Há pessoas transparentes, perfeitos livros abertos que a muito custo conseguem esconder um momento de simples desagrado ou um triunfo, por mínimo que seja, Vera Nunes e Cunha não era uma dessas pessoas.

Duarte recorda-se da primeira vez que a viu, no velório e depois disso, quando a voltou a ver à porta do prédio de Rodrigo, ainda nesse mesmo dia. Uma primeira Vera que oferecia uma segurança que não parecia ter e uma segunda Vera desorientada, frágil e perturbada.

A realidade caiu sobre ele pela certeza e consciência que a verdadeira Vera será pouco mais do que uma perigosa vendedora de ilusões que o terá muito provavelmente conseguido ludibriar até ao arrancar da viatura. 

Duarte corre como se a sua própria vida disso dependesse e segue em direção ao seu carro, entra, senta-se e arranca a grande velocidade em direção a casa, onde o seu lugar de estacionamento permanece vago. Avança apressadamente e corre pelas escadas acima, entra, agarra nas chaves suplentes da casa de Rodrigo e dirige-se para lá o mais rápido que as pernas e a respiração o permitem, sem grandes cuidados em não ser ouvido.

Continua a insistir ainda que numa tentativa infrutífera em ligar a Vera.

Ao abrir a porta, acende as luzes, olha para o separador que já não tem o envelope lá em cima, vê no quarto a roupa espalhada pelo chão, um dos trolleys abertos e o outro desaparecido. Os guarda-fatos estavam com as portas abertas, os passaportes caídos no chão e do dinheiro nem rasto.

Liga para um outro número e é atendido.

- O que é que tu podes querer mais a estas horas?

- Tenho um grande problema.

Duarte enviou ao amigo da judiciaria a gravação da conversa que momentos antes tivera com Vera e que obteve através do seu telemóvel de serviço, juntamente com fotografias da casa de Rodrigo, com um antes e um depois da noite de hoje a demonstrar que alguém tinha ido atrás do dinheiro, juntamente com todas as notas e apontamentos que foi construindo. Alertou o amigo para uma eventual fuga do país por parte de Vera e pediu para que fosse averiguada da possibilidade de Rodrigo estar entre as testemunhas no processo que supostamente estaria a ser preparado contra o antigo acionista maioritário da cadeia de hotéis.

Meteu-se no carro em direção a Lisboa e entrou nas instalações da polícia judiciária onde passou horas a prestar declarações, a fazer por justificar o que apenas obtivera, ou de forma ilícita, sem registo de testemunhas ou sem prova suficiente.

Foi tratado de imprudente, de incompetente e foi-lhe dito que lhe ia ser levantado um processo disciplinar.

Enquanto isso, a pronta intervenção do amigo de Duarte, junto dos superiores hierárquicos daquele, levou a que uma equipa de intervenção fosse prontamente inspecionar os aeroportos nacionais, numa operação conjunta com a polícia marítima ao nível da costa, portos e marinas.

A primeira peça do puzzle não demorou muito, com o brotar da informação de Rodrigo, dias antes da sua morte, ter chegado a acordo com a polícia judiciária para denunciar um esquema internacional de lavagem de dinheiro e fraudes diversos com a finalidade de financiamento ao terrorismo.

Das declarações de Duarte foi possível levar a cabo uma investigação que permitiu poucos meses depois, não só incriminar Jaime por tráfico de droga, como acabar com a maior rede de tráfico da península ibérica, cuja entrada em território Ibérico se dava justamente por Lagos.

Foi desmantelado, igualmente, um grupo de empresas que operavam á margem da cadeia de hotéis e que pertenciam à empresária para a qual Rodrigo estava a trabalhar, ao mesmo tempo que estava a passar informações aos agentes, numa operação, que dado o secretismo, Duarte não conseguiu ter acesso nos seus contatos iniciais junto do amigo da PJ.

Quanto a Vera, esta foi apanhada, ainda nesse mesmo dia, de trolley na mão a entrar para um avião privado, na companhia do acionista maioritário da cadeia de hotéis, com quem esta mantinha uma relação há mais de uma década.

Três meses depois, Duarte é novamente chamado às instalações da polícia judiciaria, em Lisboa, sem que lhe tenha sido levantado processo algum, ou oferecido o mais pequeno louvor ou um simples agradecimento que fosse.

É convidado a entrar numa sala que continha uma secretária e duas cadeiras e é lá deixado uns longos dez minutos.

Duarte sente as mãos a transpirar, sente-se nervoso e não entende por que razão o tinham voltado a chamar, quando o que lhe pareceu ser uma agente entra e deixa a porta fechar-se atrás de si.

Ela pareceu-lhe desfilar, de fato preto e um fino sapato de salto, a sugerir aquilo que ele apenas poderia supor como umas pernas de sonho, num andar quase dançado a realçar os movimentos dos seios, de cabelo preto carvão apanhado, lábios carnudos e olhos verdes-água.

- Boa tarde. Chamo-me Kate, Kate Miller.

Comentários

  1. Tinha entendido que este capitulo só saía para a semana
    Quem é vivo sempre aparece, não é? Bem cá temos então de novo a Kate Miller. Para uma próxima história de parceria com o Duarte?
    Quanto a esta história, está muito bem construída, parabéns. Penso que o policial é o estilo em que se sente à vontade e é por aí que deve ir.
    O Jaime foi de início o meu único suspeito. As minhas suspeitas sobre a Vera só chegaram naquele dia em que o Duarte saiu da casa do Rodrigo e a encontrou. Reforçaram-se quando ela o levou de passeio para a praia. E aí fiquei indecisa entre o Jaime e a Vera, embora em determinada altura tenha pensado que o casal alemão tivesse qualquer ligação ao assassino. Afinal este casal esteve lá só para compor a paisagem.
    Parabéns por esta belíssima história e já aguardo a próxima.
    Espero que este comentário não vá parar ao spam
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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  2. A minha linha de pensamento levava-me para o Jaime a partirf do momento em que se descobriu o que fazia na vida mas, sim, Vera tinha uns "milhões" de razões. :)

    Bom dia, Joao

    Obs: Para quando o próximo?

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  3. Suspiro. Confesso que não estava à espera de um final em aberto... Mas é assim mesmo um bom escritor: prende o leitor até ao fim e deixa-o a imaginar o resto. Parabéns. Gostei muito.
    E agora, espera-se outra etapa. :)

    Beijinhos e bom fim-de-semana!

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  4. E eis que chegámos ao fim deste belo policial, com a promessa implícita de continuação agora com uma dupla formada por Duarte e Kate.
    Parabéns, caro João.
    Gostei muito e gabo-lhe a paciência em responder a todas as nossas especulacoes.
    Isso permitiu manter um certo dinamismo que se manteve até ao fim.
    Grata.
    Abraço
    Olinda

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  5. Grande final, João. Desconfiei da Vera somente no finalzinho.
    Imaginação fértil a sua, fazer desenrolar uma máfia, a partir da desconfiança inicial .
    Gostei bastante porque os capítulos não foram extensos, texto dinâmico, proporcionando uma leitura bem agradável.
    Parabéns!!
    Beijos pra ti.

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  6. O traído é sempre o último a saber. Veja bem, tinha uma relação há mais de uma década. E depois num contexto de corrução e drogas.
    Enfim, nem tudo o que parece é.
    Abraço amigo.
    Juvenal Nunes

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  7. Olá, caro João,
    Muito obrigado, pela visita e gentil comentário no meu cantinho.
    Concerteza que será um excelente romance, pelo que pude observar neste capítulo.

    Excelente partilha.

    Votos de um excelente fim de semana.
    Abraço amigo.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com

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  8. Olá,
    O conto já terminou? 35 de 35, é verdade, mas...É que o João deixou a narrativa aberta, dando ao leitor a possibilidade de dar o fim, que mais lhe aprouvesse.
    Já tinha notado, não só neste conto, mas nos anteriores, que tem muito jeito para a temática policial, para apelidos importantes (Vera Nunes e Cunha), para personagens de nome Marta e também para mulheres de cabelo bem negro, olhos verde água e forma de andar que balança os sentidos de quem vê.
    Fiquei, todavia, sem saber, de que tinha falecido Rodrigo. Acidentalmente ou não.
    Veremos o que se segue.
    Bom fim de semana.

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  9. Um policial super interessante que me prendeu desde o inicio. Apesar de todas as informações que acabamos agora por saber, estou como a Céu, afinal o que terá acontecido ao Rodrigo, dado que estava a ajudar a policia não parece que se tenha suicidado e agora com a entrada da Kate Miller em cena, penso que a história ainda tem algo para nos contar.
    Beijinhos

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  10. Tudo desmantelado.
    Mas o aparecimento da Kate Miller no final deixou-me intrigado. Mais um caso?
    Mais um excelente capítulo, com uma narrativa muito boa.
    Boa semana, caro amigo João.
    Abraço.

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  11. Tenho pena que o conto tenha acabado, pois a narrativa esteve sempre excelente. Mas faz sentido. Gosto muito de histórias policiais...
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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  12. O conto acabou? Não acredito!!! Não sou muito boa a imaginar finais, mas tanto pode ter sido assassinato quanto suicidio. Muitos teriam razões para o matar, mas, com tantos problemas, também poderia ter escolhido pôr fim à vida. Vá lá....conte mais qualquer coisa.... Um beijinho e saúde! Uma boa semana, Amigo e parabéns pela bela 3scrita.
    Emilia

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  13. Texto lógico e Duarte
    É personagem que sente
    A pulsação aparente
    De quem consigo reparte
    A arte que em parte, parte
    Para partilhar a tantos
    Esse texto e por encantos
    Encanta a alma de cada
    Leitor de alma alvejada
    Por poesia de prantos.

    Parabéns pela postagem. Abraço cordial. Laerte

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  14. Por aqui me perdi a ler-te! Que rumo interessante deste à tua história! Gostei tanto. Nunca desistas, por favor. Beijinho

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  15. Alô! Está aí alguém atrás dessa montanha de trabalho?
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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  16. Como tenho estado ausente, fiquei um pouco perdida no meio desta trama tão genialmente urdida.
    Também gosto de um bom policial!
    Um abraço.

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